Por Alice Lima Fotos: Alice Lima/AE
Manhã de sábado em Curitiba e a rua XV de Novembro, no centro da cidade, usava seus hábitos e costumes em alta potência. Feira de Natal na Praça Osório, artistas de rua davam o tom e a cor, com música, quadros e apelos característicos do espaço. Entre tantas pessoas, um guarda-chuva de arco-íris indicava a novidade daquele 9 de dezembro: o “Percurso LGBTI+” no seu projeto piloto para dar visibilidade à memória que tanto já tentaram “deixar no armário”.
Inspirado pelo Linha Preta – trajeto turístico que perpassa a cultura negra de Curitiba – e organizado pelo projeto de extensão “Máquina de Ativismos em Direitos Humanos” e Acervo Bajubá, com apoio do Dignidade, um grupo de 25 pessoas percorreu por mais de duas horas pontos que marcam a história das pessoas LGBTI+.
Para a construção do itinerário, foram realizadas mais de 15 entrevistas com pesquisadores de diferentes áreas – que se relacionam com as pautas de diversidade, memória dos espaços, imprensa, entre outros – e também com pessoas que viveram esses locais, além de levantamentos de documentos e registros de jornais como procedimentos metodológicos da pesquisa, que envolve diversas etapas.
A advogada Taissa Denadai, que faz parte do Máquina, explica que o percurso foi pensado para contar a história LGBTI+ na capital paranaense ao longo das décadas para, assim, pensá-la de outra forma.
“A nossa ideia é trabalhar a memória dos nossos corpos, tanto no presente quanto no passado, trazendo a resistência e saindo um pouco dessa questão de só mostrar a parte ruim do que aconteceu. A gente tenta revitalizar essa memória”, explica.
Como conta o professor Leandro Gorsdorf, coordenador do projeto de extensão e professor do curso de Direito da UFPR, em suas pesquisas ele começou a perceber as ausências de outras vozes da cidade e surgiu a ideia de relacionar seus estudos sobre cidade e gênero a partir da memória LGBTI+ nesses espaços.
“Chegar aqui é o entrelaçamento de duas áreas de pesquisa que eu venho desenvolvendo na universidade. Uma é o direito à cidade e suas manifestações e comecei a perceber ausências de algumas vozes. Outra é sobre sexualidade e gênero. Na ponta dessas duas pesquisas, eu pensei ‘por que não entrelaçá-las?’ Todas as minhas pesquisas precisam ter uma intervenção ou transformação na realidade”, expõe Leandro.
A concentração aconteceu na Boca Maldita, exatamente onde está a placa em homenagem a Gilda. No local, Leandro explicou a representatividade da travesti que marcou a cidade, abordando quem passava com a frase “uma moeda ou um beijo”, e foi encontrada morta em 1983.
A história impactou a assistente jurídica Ananda Cavalcante, que ainda não conhecia Gilda.
“Entender a história por trás da placa, que existia uma vivência ali, um corpo LGBTI+, foi importante. Dava pra ver o choque no rosto dos participantes ao ouvir essas histórias e ver que essas pessoas já estão ali há muito tempo, não é de agora, só que as pessoas esquecem ou fingem que elas não existem. Quando a gente reforça isso, é um choque”, comenta.
Logo depois, a Praça Osório foi o cenário para reviver os períodos de sexualidade reprimida ou mesmo da própria existência. Um dos pontos foi o “banheirão”, o mictório que existe até hoje. Pelas fotos encontradas pelo grupo, é possível ver que não mudou tanto assim na estrutura.
Alguns passos depois, o que hoje é um “Buffet completo por 10,99” foi local de festas privadas de homens que se vestiam de Carmen Miranda e ganharam uma fama que não desejaram devido à repressão policial e às consequentes matérias na imprensa.
Cobertura da imprensa: entre aspas
Não apenas a invisibilidade marca a história que o percurso busca materializar. A representação dessas pessoas também é desvelada. A forma com a qual as LGBTI+ eram noticiadas nos jornais da época, inclusive, documentam o tratamento e o olhar da sociedade.
É o que explica o professor do Departamento de Comunicação da UFPR José Carlos Fernandes, que pesquisa a memória da imprensa no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), e foi um dos entrevistados para a elaboração do percurso. Ele também acompanhou a primeira experiência do passeio.
O pesquisador explica que até uma parte da história da imprensa, de modo geral, seus profissionais estavam atrasados em relação às pautas dos movimentos sociais, o que começa a mudar com o surgimento dos cursos superiores, entre outras transformações de estrutura.
“Se você olhar, até ali nos anos 90, ainda vai encontrar o nome de uma travesti entre aspas. Existia um discurso dissonante na imprensa alternativa, como era o caso das revistas da Grafipar e do jornal Folha de Parreira. É pelas bordas que foi mudando essa mentalidade”, exemplifica.
O grupo levou capas das publicações citadas pelo professor José Carlos Fernandes para ilustrar os períodos narrados e materializar as tantas memórias. Uma curiosidade sobre a editora Grafipar é que suas revistas eróticas chegaram a vender 1 milhão de exemplares em pleno período da Ditadura Militar.
Entre cinemas, boates e sauna
As baladas e cenas noturnas da época também renderam cliques e publicações em colunas. Eles fazem parte dos capítulos festivos e subversivos levantados pelo Máquina de Ativismos, que envolvem boates, cinemas, teatros, shows de covers, de transformistas (palavra dita à época), entre tantas outras curiosidades e marcas da vida de pessoas LGBTI+ em Curitiba.
Praça Tiradentes, Clube Operário, Largo da Ordem e o Palácio Avenida foram também lugares cujas histórias foram recontadas. Por fim, em frente ao Teatro Guaíra e na escadaria do Prédio Histórico da UFPR, o grupo fechou o caminho de resgates e reflexões sobre o cenário artístico, tantas vezes palco e acolhimento dessa comunidade.
Naquele mesmo local, em 1995, aconteceu a Marcha Nacional de Luta contra a Aids e de formação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). Esse ato pode ser considerado uma das bases para o formato das paradas de Orgulho LGBTI+, que acontecem em diversas cidades brasileiras.
Na mesma cidade que guarda processos de apagamento, Gildas e movimentos nasceram, cresceram, reproduziram e estão sendo eternizados. É isso que propõe o Percurso LGBTI+ Curitiba.
“É muito interessante participar desse projeto porque eu fui um menino do centro, gay, e que vivenciei as décadas de 80, 90, anos 2000, no centro inteiro. Então, todas essas pessoas e esses espaços que eu vivi, e os que não vivi, transpassam por mim”, conta Leandro Gorsdorf.
Sobre as próximas edições, o professor acrescenta que a ideia é que existam diferentes formatos e duração, de acordo com o público, para que essas histórias possam ser contadas da melhor maneira e atinjam o maior número de pessoas. Outro foco é que essa atividade e a documentação estimulem novas pesquisas sobre o tema nas universidades.