Por Camila Calaudiano, Flávia Cé e Priscila Murr
Fotos: Luan Alves e Evelyn Neumann
Edição: Alice Lima
Lágrimas que há 30 anos representavam a luta pela sobrevivência hoje são de orgulho. A emoção de ver essa história sendo contada numa tela de cinema ganha proporções ainda maiores por um detalhe fundamental: os espectadores da sessão dessa quarta-feira (8) foram os próprios personagens da narrativa. Os moradores da Vila Zumbi dos Palmares, em Colombo-PR, são protagonistas do documentário “Memória Vila Zumbi”, que eterniza a memória do local onde vivem a partir do histórico de luta e resistência da comunidade.
O curta-metragem foi lançado em sessão exclusiva para moradores, estudantes e professores que fazem parte da vila, entre outros convidados que se relacionam com o local e com a produção.
A própria vida na tela
Para uma das convidadas, Neide Pereira Gusmão (73), a sessão significou seu retorno a uma sala de cinema depois de mais de seis décadas. Moradora da Vila Zumbi dos Palmares há 29 anos, ela conta que a única vez que assistiu a um filme nas telonas foi quando era criança, na década de 1960. A personagem chegou à ocupação no início dos anos 1990 e relembra todo o preconceito e dificuldades que os moradores da vila sofreram, mas nunca saiu.
A personagem rememora outros tempos, quando a vila não tinha ruas asfaltadas e era conhecida especialmente por seus altos índices de violência.
“No começo, eu tinha vergonha de dizer que morava na Vila Zumbi, as patroas não gostavam de contratar quem morava na vila”, conta, lembrando ainda da dificuldade de conseguir trabalhos como diarista se revelasse onde vivia.
Hoje, Neide é viúva e a vergonha do lugar onde morava se transformou em orgulho. Após perder o esposo para o câncer, passou a frequentar o Grupo de Convivência de Idosos da Vila Zumbi dos Palmares junto da melhor amiga, Ana Pereira dos Santos, para se sentir mais próxima da comunidade.
Para a professora Claudinéia de Barros, que acompanhou os estudantes do Colégio Estadual Zumbi dos Palmares durante a sessão, é importante a iniciativa de mostrar essa história aos jovens. Ela diz que a possibilidade de os estudantes conhecerem suas raízes promove o resgate do sentimento de pertencimento e identidade.
“Muitas vezes, essa geração não tem mais isso. E ao conhecer essa questão cultural, parece que eles aprendem a valorizar mais o que têm. A partir do momento que eles conhecem essa história, principalmente a luta, valorizam mais a sociedade, a escola e a família”, garante.
“Memória Vila Zumbi” é parte da série documental “UFPR na sua Vida”, que divulga os impactos das atividades acadêmicas de extensão fora dos muros da Universidade. Além das histórias dos personagens contadas no documentário da Agência Escola UFPR, os convidados assistiram ao filme “Memórias de Luta – Vila Zumbi dos Palmares”, que é um dos produtos do Programa de Desenvolvimento Urbano e Regional: direitos sociais, inovação e disseminação de memórias de luta na Vila Zumbi dos Palmares (PDUR), desenvolvido pelo Departamento de Sociologia da UFPR, sobre os quais você pode ler mais nesta matéria. Nele, histórias de superação e dor transformada foram revisitadas sob novas perspectivas de quem vive as tantas realidades do local, que é também motivo de orgulho.
Sobre o filme produzido pela AE, o editor do núcleo de audivosual da Agência, Thiago Bezerra Benites, conta que “foi um processo de observação e revelação dos protagonistas, colaborando para mostrar a forma como a vila e os projetos de extensão caminham”.
Vila Zumbi: memória e transformação
Salete Nascimento é uma das primeiras moradoras do bairro Mauá, nome dado pela prefeitura à região onde fica a Vila Zumbi e entornos, numa tentativa de deixar para trás a luta que o nome carrega. Para ela, o nome “Vila Zumbi dos Palmares” deve permanecer.
“Na verdade, tudo devia se chamar assim. Quando eu cheguei na região, há 45 anos, tinha que ir pra Curitiba fazer compras e levar os filhos pra escola… Então, assim que vi aquele povo ocupando e dando forma à vila, pulei de alegria. Depois disso, começou a ter mercado, escola e tudo”, relembra.
Os dois documentários buscam resgatar e manter viva a memória da luta e construção da vila Zumbi e levam às telas a vontade de que nunca se apague a história desse povo – a começar pelo nome.
Surgida em 1991, a Vila Zumbi dos Palmares se formou à margem da BR-116, pela ocupação em Colombo, na região metropolitana de Curitiba. O seu nome foi sugerido por Maria da Luz, uma das líderes da ocupação, que comparou a luta de Zumbi dos Palmares pela liberdade das pessoas negras à luta pelo direito à moradia. Em 2005, o espaço se tornou parte do “Programa Direito de Morar”, projeto de urbanização das favelas no Paraná, e recebeu investimentos de cerca de 20 milhões de reais do governo estadual para obras de saneamento, revitalização, urbanização e regularização fundiária.
Por essa ação, as famílias que viviam em áreas de risco foram realocadas e houve, também, reformas para promover a preservação ambiental e melhorar as condições sanitárias das famílias. Apesar da intervenção do poder público, grande parte das ações realizadas na Vila foram, historicamente, promovidas pela própria comunidade, envolvendo moradores e instituições sociais locais. Por isso, o PDUR teve como objetivo central resgatar as memórias da comunidade Vila Zumbi, preservando e reconhecendo-as como formadoras da identidade local.
“Memória Vila Zumbi” | UFPR na sua Vida
A ideia de lançar o Memória Vila Zumbi em uma sala de cinema partiu da gerente de Desenvolvimento Institucional da Agência Escola, Patricia Goedert Melo, que também pesquisa comunicação pública e espaços de cultura. Para torná-la realidade, ela contou com a abertura e disponibilidade da Cinemateca de Curitiba, que como explica Marcos Stankievicz Saboia, coordenador do local, não se limita à preservação dos filmes, à pesquisa e acesso à memória audiovisual, mas também a promover o acesso de todas as pessoas aos bens culturais.
“Despertar a consciência sobre como interpretar as imagens e permitir a sensação de pertencimento
agrega a cidadania ao nosso público. Quando participam como público e, mais ainda, quando se reconhecem na tela e percebem que podem se expressar e que suas opiniões podem despertar interesse nas pessoas, o sentido de cidadania é despertado. Esta é uma das funções da arte”, afirma Marcos.