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Ciência Sustentável: conheça a carne celular desenvolvida na UFPR

O processo de produção da carne cultivada tem início com a coleta de células primárias, que são células coletadas logo após o nascimento dos animais, a partir do corte e retirada do cordão umbilical

 

Por João Vítor Corrêa 

Foto: João Vítor Corrêa e Zoocel/UFPR

Supervisão: Maíra Gioia

 

A população mundial deve alcançar 10 bilhões de pessoas até 2080, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU). Garantir comida para todos é, portanto, um dos grandes desafios deste século. Em um cenário em que milhões de pessoas enfrentam a fome diariamente, pesquisadores buscam soluções sustentáveis para assegurar segurança alimentar em escala global. Entre os principais pontos em debate está a produção de carne, atividade que exerce forte impacto ambiental e exige grande quantidade de recursos naturais.

Mas e se fosse possível produzir carne sem o abate de animais? A proposta, que à primeira vista parece distante, já está em desenvolvimento em diversos laboratórios ao redor do mundo. Trata-se da carne celular, também conhecida como carne cultivada, tecnologia que consiste na produção de carne a partir da multiplicação de células animais em laboratório, sem a necessidade de abate.

Equipe do Laboratório de Zootecnia Celular da UFPR. Foto: Zoocel

No Brasil, apesar de não estar disponível comercialmente, a carne cultivada já é objeto de estudo em diversos centros de pesquisa. Um deles é o Laboratório de Zootecnia Celular (Zoocel), vinculado ao Setor de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenado pela professora Carla Molento, pesquisadora de destaque nacional na temática. O laboratório integra o Núcleo de Pesquisa em Proteínas Alternativas (NAPI), que reúne seis grupos de universidades paranaenses: quatro da UFPR, um da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e outro da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). O objetivo do NAPI Proteínas Alternativas é desenvolver tecnologias para a produção de proteínas alternativas, ampliando o portfólio agroindustrial do Paraná e gerando inovação, sustentabilidade e novas oportunidades econômicas nos mercados nacional e internacional.

O processo de produção

 

O processo de produção da carne cultivada tem início com a coleta de células primárias. A médica-veterinária Juliana Olegário, que é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Veterinárias da UFPR e atua no Laboratório, tem como objeto de estudo o cultivo de células primárias de bovinos Purunã e suínos Moura. Essas células são coletadas logo após o nascimento dos animais, a partir do corte e retirada do cordão umbilical. Essa etapa requer um cuidado para evitar a contaminação do material.

 

“A principal dificuldade que eu tenho nessa coleta é que eu preciso que seja o mais limpo e estéril possível. Caso o cordão caia no chão, quando a gente vai tentar cultivar essas células, na verdade a gente consegue cultivar só o micro-organismo (fungo e bactéria) porque ficou contaminado, ficou sujo”, afirma.

 

Processo de coleta com suínos Moura em parceria com o Projeto Porco Moura. Foto: Zoocel/UFPR

Para garantir a qualidade do material, o procedimento é realizado com o auxílio de outra pessoa, que segura o filhote enquanto Juliana amarra, corta e limpa o cordão umbilical com álcool e uma solução antibiótica. O cordão é então armazenado em condições controladas para levar ao laboratório, onde as células são isoladas para o cultivo. Após o isolamento, as células entram na fase de proliferação, em que são cultivadas para aumentar seu número até atingir uma quantidade suficiente para a produção alimentar. Neste estágio, as células mantêm um estado menos diferenciado, semelhante ao de células-tronco, o que permite sua multiplicação.

Em seguida, as células passam pelo processo de diferenciação, no qual se transformam nos tipos celulares desejados, como fibras musculares maduras ou adipócitos (células de gordura). Nesse ponto, as células deixam de se dividir, concentrando-se em adquirir as características específicas dos tecidos que compõem a carne.

Após a diferenciação, o próximo passo é a formulação do produto final. Essa etapa varia conforme o tipo de alimento que se pretende produzir: podem ser produtos reestruturados, como hambúrgueres, almôndegas e salsichas, que utilizam uma massa homogênea de células; ou produtos estruturados, como bifes e outros tipos de corte cujo desenvolvimento é mais complexo, pois requer técnicas avançadas para construir uma matriz celular tridimensional que simule a estrutura natural da carne. Esse conjunto de etapas, desde a coleta das células primárias até a formulação dos produtos, é essencial para transformar a carne cultivada em uma alternativa viável, sustentável e ética à carne convencional.

 

Coleta de campo em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná. Foto: Zoocel/UFPR

No Zoocel, o foco principal é a fase inicial da produção de carne celular: o isolamento e a proliferação das células em pequena escala.

“Aqui no laboratório, a gente trabalha numa escala de bancada, com testes mais iniciais, mais de pesquisa propriamente dita. O escalonamento, que é passar da pequena escala para uma produção maior, fica a cargo de outro grupo do projeto, da Engenharia de Bioprocesso e Biotecnologia, liderado pelo professor Soccol e pela professora Susan”, explica Juliana.

 

Desafio ético

 

O soro fetal bovino, componente fundamental para o crescimento celular, é obtido por meio de punção cardíaca em fetos bovinos ainda vivos, levantando graves preocupações éticas, já que envolve o sofrimento fetal e a dependência direta da morte de animais para obtenção do insumo. Além disso, sua composição é altamente variável entre lotes, o que dificulta a padronização do cultivo celular e compromete a reprodutibilidade dos experimentos.

Diante disso, pesquisas têm buscado alternativas de origem vegetal para substituir o soro fetal bovino. Dentro do Zoocel, a bióloga Gabriela Bussi de Oliveira, que atualmente é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Veterinárias da UFPR, está diretamente nessa frente, analisando o potencial de subprodutos vegetais como fonte de nutrientes para as células. No Laboratório, os extratos vegetais são submetidos a testes de toxicidade para avaliar se prejudicam as células. Em seguida, se considerados seguros, passam por testes de viabilidade celular, nos quais diferentes concentrações desses compostos são utilizadas para tentar reduzir gradualmente, e quem sabe substituir por completo, o uso do soro fetal bovino.

A proposta é criar combinações de extratos que atendam às necessidades nutricionais das células durante todo o cultivo, sem recorrer a insumos de origem animal. Essa substituição não apenas resolveria o impasse ético, como também reduziria os custos de produção e promoveria a valorização da biodiversidade brasileira.

Entre os insumos testados estão resíduos agroindustriais como casca e película do cacau, cupuaçu e guaraná, materiais geralmente descartados na cadeia produtiva, mas que podem ser reaproveitados com valor agregado. A escolha por ingredientes nativos brasileiros, além de contribuir com a sustentabilidade ambiental, também pode posicionar o país como fornecedor estratégico no mercado global de proteínas alternativas. Como explica Gabriela: “Se a gente tiver um produto que é nativo daqui, valoriza bem mais. Porque outros lugares, às vezes, não vão ter essa matéria-prima que a gente tem aqui. Então, seria bem interessante, porque valorizaria a nossa flora e o que já produzimos por aqui.” Essa abordagem reforça a proposta de transformar resíduos locais em insumos estratégicos, contribuindo com a bioeconomia e com o desenvolvimento de soluções éticas e sustentáveis para a produção de carne cultivada.

 

 

O papel do laboratório

 

Na avaliação da coordenadora do Zoocel, Carla Molento, a carne cultivada não deve ser vista como substituta da pecuária, mas como uma nova alternativa no cardápio da sociedade. Em participação recente no programa A vida não para, da TV Evangelizar, Carla destacou que a carne cultivada não pretende substituir o campo, mas complementá-lo, oferecendo novas oportunidades para produtores de insumos vegetais e reduzindo os impactos ambientais da produção tradicional. Sobre o papel do laboratório, a professora destacou o objetivo central de criar ciência. “O nosso laboratório não visa produzir carne em escala comercial, mas sim desenvolver conhecimento científico que sirva de base para o setor industrial e para a formulação de políticas públicas”, explica a docente, que também preside a associação CellAg Brasil, dedicada à agricultura celular.

Além das atividades de pesquisa, a UFPR integra o Alt Protein Project, iniciativa internacional liderada pelo Good Food Institute (GFI), organização sem fins lucrativos dedicada ao avanço das proteínas alternativas. O projeto conecta estudantes e pesquisadores de universidades ao redor do mundo, incentivando a troca de conhecimentos e a colaboração científica em prol de um sistema alimentar mais sustentável e inovador.

 

Cenário regulatório e futuro da carne cultivada

 

Atualmente, apenas quatro países autorizaram a comercialização de carne cultivada: Singapura, Estados Unidos, Israel e Austrália. No Brasil, embora o produto ainda não esteja disponível no mercado, o cenário começa a se transformar. Em 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma normativa que estabelece diretrizes para a regulamentação de novos ingredientes alimentares, incluindo os obtidos por meio de cultivo celular e fermentação de precisão.

A regulamentação é um passo importante, mas ainda há obstáculos a serem vencidos. Segundo Juliana Olegário, doutoranda do Zoocel, o futuro da carne cultivada no país depende do avanço técnico das pesquisas, especialmente no escalonamento da produção, e do fortalecimento dos investimentos públicos na área.

Além da UFPR, instituições como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) também vêm se dedicando ao tema, consolidando o Brasil como um polo emergente nas pesquisas em proteínas alternativas.

Ao propor uma nova forma de produzir alimentos de origem animal, sem abate, com menor uso de recursos naturais e menor emissão de gases de efeito estufa, a carne cultivada se apresenta como uma tecnologia promissora. Mais do que inovação, trata-se de uma estratégia para alimentar um mundo maior, com mais ética e menos impacto.

 

Série: Ciência Sustentável 

 

Na série Ciência Sustentável, a Agência Escola UFPR pretende provocar uma reflexão sobre os princípios éticos para o avanço científico, especialmente sobre o uso de animais nas pesquisas. 

Na próxima reportagem, você vai conhecer a pesquisa da UFPR que desenvolve um método para extrair o colágeno de jumento com o objetivo de evitar a extinção da espécie.

 

 

 

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Sobre a Agência Escola UFPR

A Agência Escola UFPR, a AE, é um projeto criado pelo Setor de Artes, Comunicação e Design (SACOD) para conectar ciência e sociedade. Desde 2018, possui uma equipe multidisciplinar de diversas áreas, cursos e programas que colocam em prática a divulgação científica. Para apresentar aos nossos públicos as pesquisas da UFPR, produzimos conteúdos em vários formatos, como matérias, reportagens, podcasts, audiovisuais, eventos e muito mais.

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