Por Alana Morzelli
Supervisão: Maíra Gioia
Fotos: acervo pessoal, Andrey Schlee (Iphan) e Luiz Alphonsus
A gestão conta, no total, com 11 terreiros e 22 membros; o tombamento de objetos é um processo importante, que visa protegê-los legalmente, reconhecendo-os como bens culturais de valor
Objetos religiosos sob gestão compartilhada entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e instituições religiosas não são uma novidade. Há mais de cem anos, acervos sacros da Igreja Católica são tombados e abrigados em museus como exposições permanentes, mas ainda preservam seu uso como elementos sagrados. Um exemplo claro disso é a imagem de Santo Antônio, datada do século XVIII e de estilo barroco, que está no Museu de Arte Sacra de Ouro Preto. Durante as celebrações do dia de Santo Antônio, a imagem é retirada do museu para participar da procissão, é levada para a igreja onde é cultuada e faz parte das festividades religiosas. Após a celebração, a imagem retorna ao museu, onde continua a ser preservada como um objeto museológico tombado durante os outros 350 dias do ano.
O tombamento de objetos é um processo importante, que visa protegê-los legalmente, reconhecendo-os como bens culturais de valor. Esse ato administrativo realizado pelo IPHAN transforma o objeto em patrimônio protegido, obrigando sua preservação. O que torna a coleção Nosso Sagrado, localizada no Museu da República, que fica no icônico Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, em algo inédito é a gestão compartilhada de objetos sagrados das religiões afro-brasileiras. Pela primeira vez, essa gestão foi realizada em parceria com religiosos, sacerdotes e sacerdotisas dessas religiões, o que representa uma grande mudança na forma como esses objetos são tratados e respeitados.
A campanha Liberte Nosso Sagrado ganhou força em 2017, com o objetivo de resgatar objetos sagrados de Umbanda e Candomblé apreendidos durante a Primeira República e na Era Vargas. Após anos de luta e empenho, em 2021, o acervo foi transferido do acervo da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCERJ) para o Museu da República. Atualmente, a coleção conta com 521 objetos, que incluem vestimentas, “armas” como espadas, facas e machados — instrumentos usados pelos orixás —, além de imagens de santos católicos e entidades da umbanda. Desses objetos, 126 já foram tombados pelo IPHAN. De acordo com Jorge Santana, professor de História do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e um dos diretores do documentário Nosso Sagrado, não se sabe exatamente quantos itens foram apreendidos no período, pois muitos desses objetos não eram registrados de maneira adequada, e vários foram descartados ou destruídos em um incêndio ocorrido no final da década de 1980, no acervo da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCERJ).
“Esses materiais eram apreendidos como provas de crime, muitas vezes junto aos religiosos e praticantes, pois esses objetos eram acusados de estarem relacionados à prática de magia, curandeirismo, feitiçaria e espiritismo”, explica Santana.
A partir dos inquéritos realizados para a apreensão de objetos religiosos, foi criado o projeto Liberte Nosso Sagrado: desarquivando memórias da repressão e da resistência das comunidades de terreiros no Rio de Janeiro republicano (1889-1945). O projeto envolve o Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) e o Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Os pesquisadores, analisando os inquéritos policiais, buscam entender como aconteciam as apreensões dos objetos religiosos e qual foi o impacto dessas ações nas comunidades tradicionais.
Embora o compartilhamento do acervo possa parecer um processo confuso, ele não se configura como uma guarda compartilhada. A curadoria religiosa funciona mais como uma forma de aconselhamento e de construção coletiva. O grupo responsável pela gestão compartilhada é composto por 11 terreiros, que representam as principais frentes do movimento Liberte Nosso Sagrado. Esse grupo conta com 22 membros, sendo um titular e um suplente de cada casa de Umbanda ou Candomblé. Não há cargos formais dentro da curadoria, mas a liderança é exercida por Maria do Nascimento, conhecida como Mãe Meninazinha de Oxum, uma Ialorixá do Candomblé — cargo de maior autoridade dentro de um terreiro — por ser a mais antiga do grupo, conforme explica Marco Antonio Teobaldo, membro do grupo de gestão compartilhada do acervo Nosso Sagrado.
“O museu admitia a sua ignorância para fazer o tratamento dessa coleção sozinho. Era necessário um tratamento que fosse realizado com respeito. O respeito que nós estávamos reivindicando”, explica Teobaldo.
O movimento tem origens antigas. Maria do Nascimento, desde criança, ouvia da mãe e da avó de Santo que “nossas coisas estão presas na polícia”, mas não entendia o que isso significava. Só na vida adulta, ao visitar a exposição, parte do acervo da PCERJ, ela compreendeu que aqueles objetos sagrados não podiam continuar ali. Desde então, sempre que teve oportunidade, em eventos públicos ou em contato com autoridades, ela destacava a necessidade de retirar os itens da polícia, pois estavam sendo exibidos como provas de crime, troféus de guerra, junto a suásticas nazistas, armas de fogo e outros objetos apreendidos.
Uma das principais missões do grupo é expor a forma preconceituosa com que os objetos e símbolos das religiões afro-brasileiras foram nomeados no acervo da PCERJ, além de preservar esses artefatos. O objetivo é corrigir essas nomenclaturas e adotar a terminologia respeitosa escolhida pelos próprios praticantes dessas religiões. Esse processo vai além de uma simples mudança de palavras; trata-se de uma estratégia para revelar e confrontar os preconceitos que, ainda hoje, estão profundamente enraizados nas atitudes sociais e culturais em relação a essas crenças.
No entanto, recentemente, o grupo tem sentido sua participação ameaçada após a troca de gestão, com o contato sobre o acervo sendo interrompido. Atualmente, há uma denúncia em andamento, mas ainda não houve nenhuma resposta por parte do Museu.
“Esses crimes continuam acontecendo, os terreiros continuam sendo invadidos, as pessoas continuam sendo mortas e a gente tem uma Constituição mais forte ainda, que nos garante o livre exercício da nossa religião”, declara Marco Antonio.
As práticas não morrem
O problema dessa dinâmica mora no fato de que a ritualística e a liturgia da igreja católica são diferentes das religiões afrobrasileiras. Para a Umbanda e o Candomblé os objetos estão vivos e precisam se alimentar. Canjica, dendê, cachaça e café são alguns dos alimentos oferecidos para canalizar energia e fortalecer a relação entre o indivíduo e a entidade. Quando esses objetos são tombados, não podem receber essas oferendas, porque podem gerar prejuízo ao objeto que deve existir para sempre. Após reivindicações, o Museu da República permitiu a realização de cantigas em volta de objetos.
“Existe toda essa dimensão ontológica e filosófica de como os objetos podem ser tratados dentro das práticas estatais”, explica Thiago Hoshiro, doutor em direito e cocoordenador do projeto Liberte Nosso Sagrado da Universidade Federal do Paraná.
Assim como os católicos acendem velas para prestar louvor ao santo protetor, os praticantes das religiões de matriz africana preparam iguarias que agradam as entidades com as quais mantêm vínculo espiritual. A comida é observada como um mediador simbólico nesta relação entidade-humano. Ela simboliza as proezas e valores do santo ao qual a pessoa se associa, bem como práticas alimentares que devem ser restringidas para melhorar este relacionamento.
De acordo com Andressa Sobreira, Iyálorìṣa Andressa de L’Ọbà, essa prática costuma ser realizada anualmente, com a realização do contato por meio do jogo de Búzios. No entanto, caso, mesmo com o contato, o “dar de comer” ao santo não seja feito, a conexão entre o santo e o filho de santo se enfraquece.
“É como uma planta. Você precisa cuidar, regar, colocar ao sol, fazer tudo para que sua energia permaneça viva. E com o sagrado é a mesma coisa”, explica a mãe de santo.
Nada substitui o ato de “dar de comer” aos santos, pois ele representa a conexão entre o fiel e a divindade. Porém, como Andressa esclarece, objetos como os presentes no acervo, que passaram quase um século sem poder ser cultuados, dificilmente mantêm suas energias vivas. O grupo religioso responsável pela gestão do acervo afirma que, em seus jogos e oráculos, não percebem a necessidade do ritual nesse caso.
“A Mãe Meninazinha de Oxum consultou o oráculo e nenhuma daquelas peças neste momento precisam ser alimentadas, elas precisam ser respeitadas.”, conta Teobaldo.
Ocupar espaços
O movimento Nosso Sagrado é uma entre várias intervenções religiosas que reivindicam a reparação histórica pela violência e intolerância religiosa ocorridas e ainda presentes no Brasil. Uma forma de contar essa história visualmente seria demarcar e revelar à população os terreiros históricos que existiram em diversas áreas das cidades, locais que hoje são considerados nobres, mas que já foram ocupados por essas religiões e depois expulsos dessas regiões.
“As cidades brasileiras, elas são muito demarcadas a partir da hegemonia católica. Então são nomes de ruas, são praças, são nomes de bairro. Então é para a gente disputar essa cidade”, explica Jorge Santana.
Não há um plano institucional concreto para as ações de demarcação, mas os apoiadores do movimento sugerem a instalação de placas com os nomes e a história dos terreiros que já existiram, além da criação de um museu dedicado aos objetos e à história das religiões afrobrasileiras. Essas iniciativas visam informar a população e contribuir para a superação gradual do preconceito.
A série Raízes de Fé apresenta duas reportagens produzidas pela Agência Escola UFPR sobre o movimento Liberte o Nosso Sagrado. A campanha tinha como objetivo a devolução de objetos sagrados de religiões afro-brasileiras, que estavam sob a custódia da Polícia Civil do Rio de Janeiro e foram transferidos para o Museu da República em 2021. O material explora os impactos desse movimento na luta contra o preconceito religioso.