Por Gabriel Domingos Edição: Alice Lima Fotos: arquivo
Entre os anos de 2013 e 2014, Elaine Gomes Ferreira, a “Barbosa”, viveu um período de transição do Processo Seletivo Simplificado para contratação de professores no Paraná (PSS) para a vaga como concursada na rede estadual de ensino. “Todo mundo, na escola ou no bairro, me conhece como Barbosa – sobrenome do ex-marido –, é um nome institucional”, diz.
O bairro é o Mauá – na localidade da Vila Zumbi, grande Curitiba – onde fica o Colégio Estadual Zumbi dos Palmares, endereço profissional de Elaine há mais de uma década. Concursada a partir do ano seguinte, Elaine pôde escolher entre duas escolas – a Zumbi e uma nas proximidades – e optou por ficar com a carga horária de professora completa e os “projetos diferenciados” na primeira, como parece ser a sua preferência desde aquele momento: “daqui não saio, daqui ninguém me tira, só quando aposentar”, determina Elaine.
Os “projetos diferenciados” da Barbosa envolvem as culturas afro e a indígena. O mais legal, como comenta, é que “os alunos entram na minha loucura, eu monto a loucura e eles vêm junto”, se referindo à participação e ao envolvimento dos estudantes nas atividades que ela propõe. Em 2023, por exemplo, a professora fez um desfile de moda.
“O evento reunia as culturas indígena, afro e europeia e os modelitos eu guardei para, inclusive, no dia de apresentar a dissertação do mestrado, levar os alunos comigo vestidos com as peças”, conta Elaine.
Um dos objetivos desses projetos, diz Elaine, é envolver os jovens em atividades que os façam sentir orgulho de si, da cidade, das pessoas com quem convivem. “Eles veem, com isso, que conseguem fazer coisas boas e nós queremos esse desenvolvimento deles durante todo o período na escola”, conta.
Surpresa para a professora
Em 2022, aconteceu a segunda apresentação de “O cemitério dos escravos”. Essa peça de teatro foi escrita por uma ex-aluna, que estava na época no segundo ano do ensino médio, em 2019. Naquele ano, somente os alunos do período noturno assistiram ao espetáculo. Aconteceu, porém, de uma aluna, ainda “pequeninha”, como lembra Elaine, estar entre os espectadores. Esse privilégio aconteceu porque o irmão dela atuou na peça.
Em 2023, também no segundo ano do ensino médio, aquela menina “que era pequeninha” quis fazer a peça que o irmão apresentara anos antes. Como não poderia ser diferente, a professora aceitou. Porém, ela não ficou sabendo de um detalhe: os ex-alunos foram convidados. Elaine, na verdade, sabia que o irmão dessa aluna estaria presente, afinal, ele encenou aquela história mais de uma vez. Quatro anos depois, ele voltou ao palco para atuar junto da irmã. A surpresa, porém, foi que chegando no dia da apresentação todos estavam lá, “e foi emocionante porque eles vieram por nossa causa”, diz Elaine.
A professora recebeu o abraço de todo mundo em um momento que, diz ela, faz tudo valer a pena. “Eu não sei nem como vou escrever essa experiência na minha dissertação sem chorar”, diz. Ainda mais que, seus alunos prometem, vão à apresentação final do mestrado da professora que tanto os inspira.
A memória da Vila Zumbi
Professoras na Pós-Graduação em Sociologia, Valeria Floriano Machado e Marisete Teresinha Hoffmann-Horochovski chegaram ao Colégio Zumbi dos Palmares com a ideia do documentário apresentado no final de 2023. E o desenvolvimento de um projeto assim não poderia ficar nas mãos de outra pessoa senão de Barbosa. Encantada com a iniciativa e por saber bem como tudo começou, as memórias e as histórias dos moradores, Elaine ficou à frente do projeto e contou que a escola vivenciou a produção do documentário em um momento de desafios.
Um deles: o novo ensino médio. Já não tinha mais os três anos de curso, tinha uma aula extra na grade, eram mais matérias para estudar e veio, também, o ensino online. O segundo desafio foi a votação para decidir se a escola seria de administração cívico-militar ou de conjunto estado e iniciativa privada. Sobre a votação, Elaine comenta que a comunidade se mobilizou pela manutenção da escola como sendo exclusivamente do Estado, pública. A motivação para isso é que muitos moradores da comunidade ajudaram, com os próprios braços, a erguer a escola. “Botando tijolo e levantando parede”, compartilha Elaine.
Essa é mais uma memória do projeto que, segundo a professora, refletiu muito as lutas da comunidade, que dá muito valor ao que conquistou. A professora Elaine também destacou os bastidores dos documentários exibidos na escola no último ano. “Tivemos alunos que ficaram encantados e vaidosos por terem aparecido”, conta a professora.
Os documentários ganharam elogios da professora também por mostrar uma imagem positiva do lugar em que cada aluno mora. O trabalho levantou a autoestima de todos por exibir uma perspectiva de luta e orgulho, e fortalecer a ideia de pertencimento.
A entrada no Profsocio
“Ah, eu já tenho uma certa idade, eu não vou passar em um mestrado da Federal”. Em um primeiro momento, Elaine resistiu, é verdade, ao convite das professoras Valeria e Marisete para se inscrever no Mestrado Profissional em Sociologia em Rede Nacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Também é verdade que as professoras, os colegas de escola e os alunos insistiram tanto que ela acabou se inscrevendo.
Aí teve uma reunião remota de preparação para as etapas de classificação, como fazer a carta de intenção, tirar dúvidas. “Tinha um rapaz lá que disse estar tentando pela quarta vez, eu pensei: ‘se ele tá tentando pela quarta vez, o que eu tô fazendo aqui?’”. Mas Elaine fez a carta: passou. Fez a entrevista: passou também. E começou o mestrado.
Desde o começo, Elaine queria fazer uma intervenção. Ela, que gosta muito de política, pensou em um “Role Playing Game” (RPG) – jogo de interpretação de papéis – para estruturar uma aula sobre política. Mas, com a ajuda da professora Simone Meucci, Elaine entendeu o que, de fato, era seu objetivo no mestrado. Foi na aula dessa docente, que a professora Elaine conheceu a lei 10.639, do ano de 2003, que incluiu no currículo escolar nacional a temática “História e cultura afro-brasileira”.
“Eu já trabalhava com isso, mas fazia porque gostava, não tinha conhecimento da lei”, conta Elaine. Então, apresentada à legislação, a professora se aventurou no Direito. Conversou com professores da área para entender melhor o texto, reuniu outras normas semelhantes e se debruçou no estudo e análise dessas leis.
Esse estudo é um complemento da prática, tanto que em 2024 a professora planeja um “café filosófico” com os professores do direito que conversou para um debate sobre o tema. O interesse é apresentar o estudo para todos os colegas.
A ideia é que aconteça um ciclo. Durante todo o ano, a escola trabalha o tema, em todas as disciplinas, e o fechamento será no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. “Porque o trabalho da Consciência Negra leva um ano, é muita coisa”, argumenta Elaine.
Para o mestrado, Elaine vai fazer uma coleta de dados junto aos alunos e professores do trabalho que será realizado no decorrer do ano. A ideia é verificar algumas impressões, por exemplo: “olha só, ela foi modelo no último desfile”. Além disso, ela quer observar como os estudantes estão se preparando para trabalhar nos projetos desenvolvidos na e pela escola.
O professor pode ser inspiração
“Eu (ou os colegas) estudar é um incentivo que damos para eles, se nós não paramos, porque eles vão parar?” É assim que Elaine define a experiência de ser “a ponte” entre alunos da escola e a universidade. A professora gosta de passar o mestrado que desenvolve para o coletivo: “eu digo ‘gente, o nosso trabalho vai estar na Universidade Federal’ e eles respondem ‘uau, vamos estar lá?’. E eles vão”, assegura Elaine, para ver que ela recebe cobranças, assim como os cobra em sala de aula e, também, porque os seus alunos, jovens que são, terão muitas oportunidades pela frente e eles podem chegar lá.
Quando Elaine faz mestrado e em uma área – sociologia — diferente da sua formação original – filosofia – ela quer, também, demonstrar aos seus alunos que eles podem fazer. É uma aproximação da universidade, da ciência, com a comunidade.
Elaine conta todas as suas experiências para seus alunos. Como foi a aula, o nervoso de apresentar trabalho, as muitas leituras para fazer, trabalhos para entregar… e garante aos jovens do Colégio Zumbi dos Palmares que, quando for a vez deles, vai ser tão legal quanto é para ela.
Vem aí o Clube do Livro
Eles — os alunos — perguntam muito sobre a universidade, a rotina, o estudo, como são os professores. Tamanha curiosidade levou a um trabalho sobre como são as profissões que cada um gostaria de exercer.
E agora, diz Elaine, “vamos abrir o clube do livro para discutir a literatura dos vestibulares”. Os alunos sentiram a necessidade e isso aconteceu, segundo a professora, em um efeito “cascata”.
“Eles tinham interesse, mas quando nós (professores) ouvimos e mostramos o nosso interesse, a mobilização deles aumenta”, diz. É assim que o Colégio Zumbi dos Palmares espera a maior quantidade de alunos do terceiro ano fazendo vestibular.
Sonhando cientificamente
“Para a escola, continuar fazendo. Pessoalmente, para mim, é fazer com que meus alunos se lembrem de mim, é crescer enquanto pessoa”, diz Elaine sobre a expectativa do futuro de seu trabalho enquanto professora e enquanto mestranda da UFPR. Para ela, é um sonho manter contato com alunos, cuidar deles e inspirá-los na vida e na universidade.
- A reportagem é uma inspiração no podcast Fala Cientista, um dos produtos do portfólio Agência Escola que entrevista professores e pesquisadores.