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Vote com Ciência: cidade digital

Por Gabriel Domingos

Fotos: Carolina Israel, Anthony Torres e Agência Estadual de Notícias 

Supervisão: Maíra Gioia

 

“Click*”, passa o cartão, gira a catraca e – se estiver com sorte – escolhe um banco para sentar. O momento de entrar no ônibus, incluindo o cumprimento para um/a motorista mais bem humorado/a, não leva mais do que um minuto. É o suficiente, porém, para a câmera acoplada ao sistema de bilhetagem eletrônica tirar cinco fotos de você, que usa o cartão transporte isento ou com direito a descontos.

Essa eficiência, de invejar qualquer paparazzo, é para fazer o envio das fotografias a um sistema de checagem. Este, vai verificar se a pessoa “titular” do cartão é quem realmente está fazendo o uso. A justificativa é que a utilização indiscriminada do cartão que garante a isenção ou descontos pode encarecer a passagem.

Contudo, alerta Carolina Batista Israel – coordenadora do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles – trata-se de um direito fundamental que está, cada vez mais, condicionado à cessão de dados biométricos e informações de cunho pessoal para processamento do Poder Público e empresas parceiras.

De acordo com levantamento do Núcleo Curitiba, são 873** câmeras em funcionamento no sistema de transporte da Capital. Elas estão dispostas nos ônibus, nas estações-tubo e nos terminais da cidade. Além do monitoramento das pessoas, as câmeras nas catracas dos ônibus possuem a possibilidade de reconhecimento facial. Além disso, a partir dos dados coletados na bilhetagem eletrônica, explica Carolina, a empresa que faz a gestão do transporte público consegue obter o padrão do deslocamento espacial que você faz pela cidade.

Olhando assim, até parece inofensivo, certo? Mas, a grande dúvida é que, hoje, não há compreensão sobre o destino dos dados coletados, sobre quem acessa essas informações e, muito menos, sobre o uso que é feito delas.

Em seu site oficial, por exemplo, a Prefeitura Municipal de Curitiba informa que a Muralha Digital – centro de operações de monitoramento por vídeo da Capital – “Segue as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, de 14 de agosto de 2018”. A partir da operação do Hipervisor Urbano, dados de todas as áreas de Curitiba foram integrados em um único sistema de processamento.

A própria LGPD, no entanto, para atividades relacionadas à segurança pública, investigação e repressão de infrações penais, defesa e segurança de Estado, exime o Poder Público da necessidade de consentimento dos titulares dos dados, incluindo informações sensíveis. Estas áreas são, justamente, a bandeira da propaganda feita em favor das tecnologias de monitoramento e a principal função em que elas são aplicadas. Assim, explica Carolina Israel, são três fatores que convergem para a aceitação da “invasão tecnológica”. A percepção de medo – que justifica os “investimentos em segurança”, a falta de opção/resignação – a percepção de que é melhor ceder os dados do que ficar sem o serviço e, até mesmo, a diversão – com jogos e atividades de entretenimento digitais que coletam informações sobre o comportamento das pessoas.

 

Afinal, o que é uma ‘Cidade Digital’?

 

“Se querer é poder. Tem que ir até o final. Se quiser vencer…”. Todos os anos mais de 20 pessoas, no embalo da trilha sonora de Paulo Ricardo, participam do Big Brother Brasil, da Rede Globo. Elas desejam, claro, o prêmio final e, para isso, devem viver – quem chega à final – cerca de três meses com câmeras vigiando todos os movimentos feitos 24 horas por dia.

É provável que em mais de vinte edições do programa você não tenha participado ainda. Talvez, você nem goste do conceito e não seja um espectador do reality. Contudo, andar pela cidade de Curitiba, por exemplo, é um exercício feito sob monitoramento. Placas como “Sorria você está sendo filmado” ou com a sinalização de uma câmera, aparecem (ou devem aparecer, de acordo com a lei) na Rua XV, nas Ruas da Cidadania, no Mercado Municipal, nos parques e, até mesmo, se você está chegando de outra cidade, seu carro foi capturado em imagem.

 

Foto: Carolina Israel

 

Apesar de, na ciência, não existir um consenso para a definição de “Cidade Digital”, Carolina Israel explica que – de modo geral – a expressão se refere aos dispositivos eletrônicos que são utilizados para coleta e processamento de informações para posterior tomada de decisão no âmbito do governo da cidade.

Para Rodrigo Firmino, professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e colaborador do Observatório das Metrópoles: “Não tem como viver sem levar em conta os níveis de relacionamento entre cidadão, governo e o próprio espaço das cidades sem considerar a existência da tecnologia digital”.

Essa relação, explica Rodrigo, está nas tecnologias sofisticadas de monitoramento, nos sistemas de registro de dados ou em uma simples troca de mensagens que, por exemplo, me colocou em contato com o professor. Essa integração tecnológica também chega a outras esferas cotidianas, em atividades como olhar o cardápio do restaurante, verificar o horário do ônibus, a temperatura do momento…

Parte considerável dessas tecnologias, sobretudo as câmeras de monitoramento, se tornaram equipamentos altamente sofisticados. Segundo Rodrigo Firmino, as primeiras iniciativas de monitoramento dispunham de câmeras de registro de imagens, com uma resolução mais baixa e pouca capacidade de retenção de dados. Por isso, as imagens eram enviadas para um centro de controle que “contava com o fator de análise humano”, diz.

Hoje, a partir da programação de algoritmo, essas mesmas câmeras são capazes de produzir análises sobre determinados contextos. Daí vem os usos, sobretudo, para segurança. Segundo Carolina Israel, dois problemas ficam expostos a partir dessa lógica de utilização das tecnologias: 1) importação de soluções de outros países que não necessariamente se aplicam à realidade local e 2) convicção teórica que reduz os problemas sociais à esfera tecnológica, o chamado ‘tecno-solucionismo’.

A mais recente iniciativa digital de Curitiba é o chamado “Hipervisor Urbano”. Este é um sistema que integra todos os dados públicos da cidade de Curitiba em uma única plataforma de monitoramento e análise. O Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUC) foi o responsável pelo planejamento do sistema e contou com apoio da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Além disso, o ambiente em que funciona o Hipervisor é de responsabilidade da empresa privada Metropolys.

 

Foto: Anthony Torres

 

Segurança

 

Uma grande preocupação da Ciência com o uso da tecnologia é o viés pessoal/ideológico. Carolina Israel alerta que os estudos sobre a aplicação da tecnologia identificaram que o comportamento da pessoa responsável por projetar os sistemas de monitoramento é transmitido para a programação dos algoritmos de controle. Desse modo, aumenta a margem para a reprodução de preconceitos sociais a partir do próprio funcionamento do dispositivo.

As câmeras, explica Rodrigo Firmino, podem identificar situações “anormais” a partir da sua programação, exemplo: um objeto, como uma mochila, que está sozinho em determinado espaço. Acontece que, estando enviesado, o algoritmo produz situações de discriminação. No Brasil, o pesquisador Tarcízio Silva – doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) – possui trabalho que mapeia casos de discriminação a partir da aplicação do algoritmo. O trabalho pode ser conferido aqui.

Curitiba chegou a discutir uma iniciativa para evitar o uso de câmeras de reconhecimento facial na cidade. Em setembro do último ano, porém, a Câmara de Curitiba arquivou o projeto que previa a regulamentação e a proibição do uso das câmeras de reconhecimento facial.

Além disso, a Política Municipal de Videomonitoramento (PMVC), uma das leis que rege as estratégias de segurança por monitoramento digital, não prevê a participação dos Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs) e não informa sobre a destinação dos dados obtidos a partir das tecnologias.

 

Foto: Alex Adam/SEPL

 

Saúde

 

De acordo com o boletim InfoGripe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Curitiba foi uma das quinze capitais que aumentaram o registro de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Os dados do boletim foram coletados na semana de 01 a 07 de setembro. A SRAG se refere às síndromes gripais, tais como: influenza, covid-19 e outras.

Caso você tenha sido acometido por uma dessas doenças, a recomendação é procurar o atendimento médico especializado. Em Curitiba, isso pode ser feito pelo aplicativo Saúde Já. Entre os serviços que ele disponibiliza estão o agendamento de consultas e as consultas por videochamada.

Novamente, o questionamento para esse serviço digital é a quantidade de informações coletadas, bem como o uso que se faz delas e quem faz esse processamento. A reportagem do Observatório em parceria com a Agência Escola realizou o cadastro no aplicativo por meio da plataforma e-cidadão para verificar se há informações claras sobre uso e compartilhamento dos dados.

E a resposta foi negativa. O documento de termos de uso da plataforma informa que a Prefeitura de Curitiba é a responsável pela gestão do serviço. Além disso, somente a Prefeitura pode autorizar o acesso às informações das pessoas cadastradas na plataforma. Contudo, não há nenhuma especificação sobre quem pode pedir acesso e os critérios para que ele seja concedido.

A plataforma prevê que a pessoa cadastrada consiga rever o consentimento para processamento e uso dos dados, também é possível pedir a limitação, o bloqueio e a exclusão das informações e, principalmente, é permitida a solicitação para informações sobre o compartilhamento dos dados pessoais disponíveis na plataforma. Esse processo, contudo, é altamente burocrático e, de acordo com a própria plataforma, não se aplica às possibilidade de exceção previstas na LGPD.

 

Educação

 

Na educação concentram-se as mais recentes polêmicas envolvendo a utilização de tecnologia no serviço. Um exemplo foi a propaganda espalhada para os pais de alunos da rede estadual de ensino contra a mobilização dos professores que eram contrários à proposta “Parceiro da Escola”. Naquela ocasião, o vídeo foi enviado para os números de telefone dos pais de alunos cadastrados na plataforma governamental.

Para Carolina Israel essa situação se configura como: “Uma assimetria de poder. Os sistemas de coleta de dados tornam o cidadão totalmente transparente para o governo e a iniciativa privada. Contudo, para as pessoas, o funcionamento dos aplicativos é opaco, não se tem informações sobre como funciona”.

A propaganda contra a mobilização dos professores não é um episódio único. Em novembro de 2022, um aplicativo de educação foi instalado nos celulares dos professores da rede estadual do Paraná sem a autorização dos docentes. Situação semelhante aconteceu com os professores de São Paulo no ano de 2023.

Outra situação, também no Paraná, que chegou ao conhecimento do Observatório das Metrópoles, é a utilização de mecanismos de reconhecimento facial para o monitoramento das emoções de alunos da rede de educação.

 

“Os dispositivos de monitoramento de emoção são pseudociência, as emoções não são identificáveis.”, alerta Carolina Israel.

 

As nossas emoções variam de acordo com o contexto daquele mês, semana, dia, às vezes, daquela hora. Além disso, explica a pesquisadora, as emoções podem variar de geração para geração e de acordo com as características geográficas. As inteligências artificiais, hoje, não têm a capacidade de ler tais contextos e isso aumenta a margem para a ocorrência de erros de avaliação.

 

Foto: Lucas Fermin/SEED

 

 

Meio ambiente

 

Curitiba com o Hipervisor Urbano, Rio Grande do Sul com a atração de empresas de data center e o Governo Federal com a criação de uma linha de crédito para projetos de big data, são exemplos de instâncias que aumentaram o investimento em dados neste ano de 2024. No entanto, “a economia baseada em dados é inviável do ponto de vista ambiental”, afirma Carolina Israel.

Segundo a pesquisadora, um centro de processamento de dados demanda quantidades enormes de energia elétrica e, também, de água para o resfriamento dos sistemas de processamento de informações. Essa água, ela explica, não pode ser reaproveitada para o consumo humano e, além disso, esses centros também são emissores de gases poluentes.

Por uma diversidade técnica

O desafio para a Ciência, aponta Carolina Israel, é a formulação de soluções tecnodiversas. Segundo a pesquisadora, essa é uma proposta para deixar de apenas importar soluções do Norte Global e passar a estudar os problemas locais e, também, as possibilidades a partir dos conhecimentos produzidos a nível local.

Hoje, porém, a pesquisadora entende que a aplicação de tecnologia digitais tende ao monopólio, sobretudo, de grandes corporações. Por isso, uma tecnodiversidade também precisa fugir aos preceitos básicos da busca por lucro de mercado e precisa, segundo Carolina, ser regida por aspectos éticos e públicos.

O investimento exclusivamente público no desenvolvimento de plataformas de tecnologia resolveria os problemas de uso de dados e de diversidade de aplicações da tecnologia? Para Rodrigo Firmino, é preciso ter um resguardo público das informações que são utilizadas e captadas a partir do monitoramento. Carolina Israel entende que, além do desenvolvimento da plataforma pública, a gestão do uso e aplicação precisa ser dividida com a população para que a tecnologia seja, de fato, transparente.

 

Eleições 2024

Contribuindo para o processo democrático, a Agência Escola e o Observatório das Metrópoles firmaram parceria para discutir a cidade nas eleições municipais de 2024. Acompanhe, na próxima próxima semana, a última reportagem com temas de interesse da população e que auxiliam na escolha do voto.

 

* As onomatopeias são um recurso característico da literatura e foram incorporadas, com maior frequência, ao jornalismo a partir de movimentos como o Novo Jornalismo, nos Estados Unidos, na década de 60. No país do Norte Global, Tom Wolfe, Truman Capote e Gay Talese são alguns dos expoentes da área. Antes, Elizabeth Cochrane (com pseudônimo de Nellie Bly), foi pioneira na aplicação do estilo literário para obras de não ficção, como o jornalismo. No Brasil, temos alguns estudiosos da área como Felipe Pena, Mônica Martinez e Edvaldo Pereira Lima. A Agência Escola utilizou esse estilo de linguagem, sobretudo, no projeto do X (antigo Twitter), além disso, o autor desta matéria considera onomatopeias algo muito bonito em uma reportagem.

** Dado sujeito à atualização.

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Sobre a Agência Escola UFPR

A Agência Escola UFPR, a AE, é um projeto criado pelo Setor de Artes, Comunicação e Design (SACOD) para conectar ciência e sociedade. Desde 2018, possui uma equipe multidisciplinar de diversas áreas, cursos e programas que colocam em prática a divulgação científica. Para apresentar aos nossos públicos as pesquisas da UFPR, produzimos conteúdos em vários formatos, como matérias, reportagens, podcasts, audiovisuais, eventos e muito mais.

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