Por Pedro Macedo
Edição: Alice Lima e Priscila Murr
Como diz a frase comumente atribuída ao escritor norte-americano Edgar Allan Poe, “os olhos são as janelas para a alma”. Afinal, é pelo olhar que as sensações ou sentimentos naturais do ser humano, como humor, tristeza ou afeto, são percebidos. Mas você sabia que eles também são uma janela direta para o cérebro? A retina, um fino tecido que reveste a camada de trás dos olhos, é o único lugar do corpo em que médicos podem observar os neurônios sem precisar abrir o crânio.
A partir dessa técnica, pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Medicina Interna e Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR) publicaram um estudo que mostra a possibilidade de haver uma relação direta entre marcadores biológicos (alterações na retina, por exemplo, a espessura da camada que a cobre ou fibras nervosas que formam o nervo óptico) e o diagnóstico de esquizofrenia.
Essa pesquisa, de caráter inovador, está em andamento, e os resultados apresentados até agora são animadores, segundo os cientistas. O desenvolvimento dessa técnica pode abrir possibilidades de um novo diagnóstico para a doença, que atinge cerca de 21 milhões de pessoas no mundo, e quase 1% da população brasileira, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Para conhecer um pouco mais sobre o estudo, a Agência Escola UFPR conversou com os pesquisadores envolvidos. Confira na matéria!
Somando evidências: psiquiatria e oftalmologia
Dr. Marcelo Alves Carriello é psiquiatra e mestre pela Pós-Graduação em Medicina Interna e Ciências da Saúde da UFPR. Ele conta que o interesse pela pesquisa surgiu por meio da leitura de artigos divulgados na área, que está em constante crescimento. Por isso, junto de seu orientador, Dr. Rafael Massuda, e em conversa com o médico oftalmologista Dr. Mario Sato, resolveu investigar a relação entre duas áreas da medicina: a psiquiatria e a oftalmologia.
A aproximação entre esses dois ramos, que em princípio podem parecer distantes, foi suficiente para alcançar resultados preliminares de grande impacto. “O que percebemos foi a redução do volume da mácula [pequena região no centro da retina] nos pacientes com esquizofrenia quando comparado ao de pessoas da mesma faixa etária e sexo, mas sem transtornos mentais”, conta o pesquisador. Essa parte chamada “mácula” permite, aos seres humanos, uma visão nítida e detalhada. As suas células convertem a luz em impulsos elétricos, que são enviados ao cérebro.
Dr. Mario Sato, que é professor associado de Oftalmologia na UFPR e responsável pelo setor de Neuro-Oftalmologia e Eletrofisiologia Ocular do Hospital das Clínicas, também comenta que essa aproximação entre as áreas é muito importante para o bem dos pacientes. “São muitas as doenças psiquiátricas que afetam a estrutura e a função do cérebro“, comenta.
“Esses exames de eletrofisiologia ocular conseguem identificar essas alterações, porque junto da tomografia de coerência óptica não é necessário a subjetividade para avaliar os pacientes”, explica.
Outra descoberta do estudo foi uma correlação entre a espessura da camada de fibras da retina com os sintomas de esquizofrenia. “Ou seja, quanto menor a espessura dessa camada, maior eram as quantidades de traços presentes na esquizofrenia. Esses sintomas são a inflamação dessas áreas”, conta Dr. Marcelo. Entre eles, estão dificuldades na expressão de emoções, diminuição da fala, bem como a manifestação de alucinações e delírios.
Esse dado já foi publicado em revistas internacionais e, conforme Dr. Raffael Massuada, orientador do Dr. Marcelo, é possível partir para novos caminhos no desenvolvimento científico. “Começamos a perceber que em áreas neuronais das pessoas com esquizofrenia, há a diminuição desse volume. E mesmo no cérebro é possível perceber que esses pacientes possuem a diminuição das estruturas de sinapse dos neurônios“, explica o médico. Sinapse é o termo utilizado para o número de conexões dos neurônios no cérebro. Desta forma, se existe essa redução, é possível associar diretamente ao diagnóstico da esquizofrenia.
Para Dr. Marcelo, essa pesquisa tem um papel importante para somar evidências para novas formas de avaliações dos pacientes com esquizofrenia no futuro. “Nossa pesquisa não tem por objetivo mudar as práticas clínicas atuais, mas podemos ajudar, no futuro, para que os pacientes possam ser melhor avaliados e tratados de forma mais eficaz, com um diagnóstico considerado mais rápido”, conta.
Ele destaca, também, a importância da realização da pesquisa de forma multidisciplinar. “A pesquisa conjunta com a oftalmologia foi uma forma de encontrar, a partir do exame biomarcador, a esquizofrenia, visto que há características biológicas de neurodegeneração (perda de neurônios) observadas nesta doença, e o olho seria uma extensão do sistema nervoso central (olho e cérebro possuem a mesma formação embriológica)“, finaliza.
A pesquisa ocorreu com 35 pacientes saudáveis, além de outros 35 de controle, que são importantes para a validação metodológica.
Mas como é feito o diagnóstico de esquizofrenia?
A linguagem médica caracteriza a esquizofrenia como um diagnóstico clínico. Ou seja, não é possível fazê-lo a partir de exames de sangue, é necessária a avaliação por parte de um profissional com experiência na área, por meio do acompanhamento do paciente.
Dr. Marcelo explica que, além disso, o médico deve realizar diversos testes para diferenciar esse de outros transtornos mentais, e até mesmo de doenças orgânicas.
“O tempo de diagnóstico depende de cada pessoa, sendo que é preciso entender que pode haver casos mais típicos que outros, além de considerar a assistência médica que essa pessoa recebe“, explica.
O professor Raffael comenta que o diagnóstico da doença tem uma incidência entre 0,6% a 1% da população. Ou seja, é uma doença não muito comum, mas não considerada rara. “A identificação do transtorno começa no adulto jovem, sendo no homem entre os 18 e 24 anos, e na mulher entre os 22 e 27“, explica. O médico conta que, para confirmar o diagnóstico, é preciso existir pelo menos dois dos sintomas abaixo:
- Delírio;
- Alucinação;
- Comportamento desorganizado;
- Discurso alterado;
- Demais sintomas negativos com prejuízo funcional.
Mas isso leva tempo, como explica Raffael. “Além do prejuízo funcional, você precisa perceber pelo menos seis meses com sintomas psicóticos leves ou com sintomas residuais. Não é um diagnóstico considerado tardio, mas existe uma certa demora porque precisa ser feito a longo prazo, pois não adianta dizer que todo paciente com sintomas delirantes ou alucinatórios possui esquizofrenia“, esclarece.
Dessa maneira, o estudo apresenta uma nova forma de poder identificar a doença. E, na medicina, quanto mais cedo uma doença for diagnosticada, maiores as chances de um tratamento eficaz. “Lembra que falei da idade? A esquizofrenia começa aos 18 anos em um homem adulto. É a idade em que ele começa a trabalhar, estudar. É um impacto direto naquilo que a pessoa vai se tornar no futuro“, alerta Raffael.
O pesquisador traz dados europeus para ilustrar essa situação: “Na Europa, apenas 20% das pessoas com esquizofrenia conseguem trabalhar. Ou seja, 80% dos pacientes ou são aposentados, afastados de suas funções“. Por isso, ele destaca que o estudo ter sido feito de uma forma multidisciplinar é essencial para trazer olhares que, às vezes, uma especialidade sozinha não consegue desvendar. “A medicina é um campo interdisciplinar e esse olhar da oftalmologia foi essencial“, garante.
Como é feito esse exame?
Nesse momento, você já deve ter percebido um pouco mais dos diferenciais da pesquisa. Mas, como esse exame é feito no paciente?
Dr. Marcelo explica que essa identificação foi feita por meio de uma Tomografia de Coerência Óptica (TCO), que não é como uma “tomografia clássica”, que utiliza radiação. Utiliza-se um laser para o procedimento. “Ele é bem rápido, dura poucos minutos, é prático e indolor e pode até ser feito à beira leito“, comenta. Por “à beira leito”, o médico quer dizer que mesmo pacientes internados, que não possuem condição de se locomover até um consultório oftalmológico, podem ser submetidos ao exame, já que o aparelho que o realiza é de fácil deslocamento.
“O paciente se senta em frente do aparelho de TCO com o queixo e testa apoiados e foca o olhar em um ponto de luz do aparelho (um olho por vez)“, detalha. O aparelho realiza uma varredura da retina e o processamento visual do software da máquina projeta uma imagem 2D para o médico, com a espessura das camadas (em geral de 7 a 9 camadas) e volume da retina.
Fotos representativa de um exame de TCO. Fonte: Os autores
“Esse aparelho emite luzes de comprimento de faixas diferentes. Para visualizar melhor, é utilizado um mecanismo no qual a luz reflete nas estruturas oculares, que é a retina e o nervo óptico, volta para o aparelho e é captada por um espectrômetro (fotodetector com câmara de alta velocidade)“, ilustra Dr. Mario Sato.
Logo, a partir de um cálculo, esses estímulos luminosos e todas as informações são processadas por um algoritmo. Então, é possível visualizar as estruturas do fundo de olho “in vivo”, como um corte anatômico.
Assim, os médicos conseguem identificar alterações da espessura da retina e do volume, como, por exemplo, a redução da camada de fibras nervosas, redução de células ganglionares, redução da camada plexiforme interna compatíveis com lesão neurológica, bem como alteração de fotorreceptores e demais partes relacionadas à condução do impulso elétrico.
Existem outras pesquisas que tentam aproximar o diagnóstico de doenças com exames que envolvem o globo ocular.
“Podemos citar estudos que avaliam as mesmas estruturas aqui citadas para diagnóstico de esclerose múltipla, doença de Alzheimer, Parkinson, ataxias espinocerebelares, que são manifestações clínicas que deterioram o equilíbrio e a coordenação motora“, explica Sato.
Dessa forma, em tese, qualquer doença que afete o cérebro na totalidade pode causar mudanças no exame TCO. “Foram bem promissores os resultados alcançados“, comemora Dr. Mario Sato. O especialista explica que com o estudo é possível associar esquizofrenia a uma redução significativa do volume macular e também da camada da retina. Dessa forma, ele acredita ser muito provável que, no futuro, o exame utilizado nesse estudo possa ser usado como marcador biológico precoce do início da doença, no acompanhamento e na melhora a partir do tratamento.
Essa pesquisa foi publicada em uma revista internacional e você pode ler o texto original, em inglês na National Library of Medicine neste link. A ciência está em constante desenvolvimento e os médicos Marcelo e Rafael vão continuar pesquisando mais evidências sobre o tema. Por hora, é possível enxergar as possibilidades no que diz respeito ao diagnóstico da esquizofrenia.
Então, os olhos poderão ser mais uma fonte para conseguir perceber como nosso cérebro atua. Os pesquisadores já finalizaram a pesquisa. Ainda não é possível diagnosticar a esquizofrenia apenas com este exame, porque a história do paciente é essencial nesse processo. No entanto, já abre novos caminhos para um diagnóstico mais rápido e certeiro.