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Afinal, como surgem as ondas e surtos de doenças infecciosas?

Por Pedro Macedo
Colaboração de Flavia Cé Steil
Edição e supervisão: Alice Lima
Arte infográfico: Bruno Marchini, sob supervisão do professor Naotake Fukushima

Cartazes desgastados com o tempo, avisos agora imperceptíveis nos elevadores ou mesmo adesivos colados às paredes de espaços públicos. A memória das regras de convivência impostas pela pandemia da Covid-19 nos últimos anos agora permanece como algo que enfrentamos graças ao avanço da ciência e da vacinação.

Hoje, o uso de máscaras já não é mais exigido na maior parte dos locais. E até mesmo a varíola dos macacos (monkeypox), que registrou seu primeiro caso no Brasil em agosto do último ano, deixou de ser considerada uma emergência internacional, conforme a Organização Mundial da Saúde.

Mesmo com os avanços científicos e a superação das últimas emergências de saúde pública, temos uma certeza: doenças existem em nosso mundo há muito tempo. Ao longo dos séculos, muitas marcaram a História como a Peste Negra na Europa (1346-1352), a Gripe Espanhola (1918-1920) e mais recentemente a Pandemia de Covid-19, que mesmo de maneira muito mais controlada do que anteriormente, continua se disseminando globalmente através do vírus Sars-Cov-2. 

Haja vista que provavelmente viveremos outras pandemias e epidemias, nos perguntamos: afinal, como surgem as ondas de doenças infecciosas?

Propondo compreender a ciência por trás dessa dúvida, a Agência Escola UFPR conversou com pesquisadores da infectologia, veterinária e patologia na busca dessa e de outras respostas.

  • Como as doenças são identificadas?
  • Como combatê-las?
  • Estaremos preparados para a próxima?

A gente te explica essas e mais algumas questões no texto!

Como sabemos que uma nova doença irá surgir?

Historicamente, pandemias acontecem com certa regularidade. É o que diz o professor do Departamento de Patologia Básica da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Breno Castello Branco Beirão. “Sabemos que novas doenças irão surgir, porque conhecemos as pressões epidemiológicas que as geram”, explica o especialista.

“Uma dessas pressões é o contato íntimo entre humanos e animais, como acontecia no mercado de Wuhan, na China”, exemplifica o professor, citando o que a comunidade científica entende como o foco do início da contaminação da Covid-19. Ele evidencia outras informações que já são consenso entre os pesquisadores, como fatores de risco para surgimento de novas doenças, a exemplo do crescente transporte internacional de pessoas e o desmatamento.

Desmatamento é um dos fatores que contribuem com o surgimento de novas doença

O especialista reforça que nem todo microorganismo que “pula” de animais para seres humanos são patogênicos. Ou seja, nem todos causam doenças. “No entanto, quanto maior a proximidade entre humanos e animais, como nos mercados de animais vivos, maiores são as chances de sermos infectados – por isso, a importância de se olhar para esses espaços”, diz Beirão.

A existência de mercados de animais vivos foi muito debatida devido aos questionamentos sobre como o novo coronavírus contaminou os seres humanos. Mas este não é o único modo que uma nova doença pode surgir.

O que a História e contextos sociais mostram?

Viviane de Macedo, médica infectologista no Hospital Santa Casa de Curitiba, do Hospital Oswaldo Cruz e professora do curso de Medicina da Universidade Positivo, conta que a história tem nos ensinado, ao longo dos séculos, diversos fatores que contribuem para o surgimento de surtos, epidemias e pandemias. Ela cita o desenvolvimento econômico desenfreado que leva a mudanças ambientais, migrações, processos de urbanização e infraestrutura urbana inadequadas.

Ainda ressalta o uso intensivo de antimicrobianos na agropecuária, ampliação do consumo de alimentos industrializados, especialmente os de origem animal, bem como o processo de evolução de microrganismos, seja por mutações virais ou de bactérias que ficam cada vez mais resistentes. Todos esses são fatores que possibilitam ainda mais novas pandemias.

“Há um monitoramento constante das organizações de saúde em localidades nas quais esses fatores, principalmente quando associados, potencializam o aparecimento de novas doenças e alteram o comportamento epidemiológico de doenças antigas, inclusive com o ressurgimento dessas”, explica a infectologista.

Ela conta também que há estudos matemáticos para estimar a periodicidade de novos surtos com dados estatísticos de epidemias ao longo dos séculos e os fatores listados anteriormente.

Outro fator de risco levantado pela especialista é a globalização, a qual permitiu a circulação mais rápida e maior de pessoas. O que ocorreu com a Covid-19, por exemplo, foi a rápida propagação dos primeiros casos, que se espalharam rapidamente pelo mundo devido às viagens de avião. Inclusive, com relatos de focos de contaminação durante o voo.

Além disso, a medicina evoluiu e existe o aprimoramento de técnicas de diagnóstico. Ou seja, com mais tecnologia, maiores são as possibilidades de diagnósticos etiológicos (comprovação médica da causa de uma doença) mais precisos.

Dessa forma, conseguimos identificar cada vez mais patógenos (organismos que causam doenças) que, na verdade, já existiam, só não eram ainda estudados ou identificados. No caso da descoberta de uma nova doença causada por um vírus, Viviane explica o conceito de vírus emergente, que significa o surgimento ou identificação de um novo vírus como agente infeccioso.

Os fatores de risco podem ser observados em outras emergências de saúde pública. Especialmente, quando consideramos a falta de estrutura física, a exemplo de lugares sem saneamento básico. A infectologista considera esse um dos principais sinais de favorecimento para doenças.

“As condições sociais e até mesmo de educação acabam potencializando o surgimento e contaminação de novos vírus e também favorecem as mutações devido à alta transmissibilidade nessas situações”, explica.

A especialista traz um exemplo recente dessas condições citadas sobre o Zika vírus no Nordeste brasileiro. “Em Recife, quando houve o surto de Zika, alguns pesquisadores observaram que a cobertura de esgotamento sanitário dos bairros com maior número de casos era inferior a 50%”, evidencia. Conforme o estudo, essa situação fazia com que parte do esgoto escoasse por canais abertos, resultando em água parada, condição sabidamente favorável à reprodução do mosquito Aedes Aegypti.

“A inexistência de serviço de coleta de resíduos em muitos pontos daqueles territórios contribuiu para proliferação de criadouros do mosquito no caminho de escoamento irregular de água e dejetos”, explica a médica. A pesquisa mostra ainda que, naqueles bairros, a densidade populacional era grande, com casas com pouco distanciamento entre si, além de muitas pessoas vivendo em uma mesma habitação. Essas são condições que permitem a transmissão mais rápida da doença, gerando grandes surtos.

Para o professor de Medicina Veterinária da UFPR Alexandre Biondo (foto), existe uma relação direta entre populações em vulnerabilidade e doenças infecciosas, conforme o caso citado pela médica Viviane de Macedo.

“Devido à sua localização, populações vulneráveis estão geralmente em maior exposição aos patógenos, que causam as doenças”, comenta o especialista. “Isso pode ser visto em populações indígenas, por exemplo, que possuem menos saneamento básico e vivem em áreas naturais, porém também com a população carcerária, que possui muito contato entre si”, comenta Biondo.

Equipe de Medicina Veterinária da UFPR leva vacina a animais de comunidades mais afastadas do centro urbano

A população carcerária, citada pelo professor Alexandre, teve um grande impacto com a Covid-19. O boletim divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, de março de 2022, mostra que foram mais de 108 mil casos confirmados desde o início da pandemia, evidenciando-se ainda 661 mortes. Dessas, 320 foram de pessoas que estão cumprindo pena e 341 de servidores da penitenciária, que também estão submetidos ao espaço.

As condições sociais precárias no ambiente urbano também se impõem como importantes catalisadores do risco de infecção. “Pessoas em situação de rua em São Paulo, por exemplo, mostraram a maior prevalência mundial de sorologia de covid pré-vacina. Além disso, são mais expostas a animais ambientais como mosquitos, piolhos e pulgas, ratos e pombos, levando a ter mais contato com esses patógenos”, explica o professor.

Outro grupo de risco são os acumuladores, aqueles que possuem um transtorno psicológico que os leva a armazenar uma enorme quantidade de itens e até mesmo de animais. “Os acumuladores possuem falta de condições sanitárias de saúde humana, animal e ambiental, o que também impacta a saúde e proporciona condições para novas doenças”, conclui.

Cachorros recebem vacinas e cuidados da equipe de pesquisadores da UFPR

Como um microorganismo contamina os seres humanos?

Antes de tudo é necessário compreender que no caso dos vírus, esses microrganismos sofrem inúmeras mutações. Conforme explica a médica Viviane, eles se multiplicam de forma muito descontrolada e seu sistema de correção acaba sendo falho. Mas, esses microrganismos seguem em sua natureza técnicas para continuarem vivos.

“Uma curiosidade ao público é que são essas constantes transformações que garantem que os vírus tenham um sistema mais competente de infecção e transmissibilidade para garantir a perpetuação entre os seres vivos”, explica a doutora. Ou seja, é um mecanismo que permite que os vírus continuem existindo entre nós.

Isso pode ser visto devido às diversas variantes do coronavírus. Conforme o próprio Instituto Butantã comenta, uma variante é basicamente uma nova linhagem desse vírus que passou por diversas mutações a partir de sua estrutura inicial. Entre as mudanças estruturais que os vírus podem ter é justamente a facilidade de ser transmitido, como o caso da ômicron, considerada uma variante de alta transmissibilidade. A Gripe Espanhola, em 1918, também sofreu variações como as da Covid.

E ao falarmos da Gripe Espanhola, que aconteceu no século passado, podemos questionar: é possível os vírus voltarem a circular? Durante a quarentena, os tópicos sobre vírus e doenças infectocontagiosas ganharam bastante repercussão, dando espaço para reportagens como essa que mostra a descoberta de cientistas na Sibéria de um vírus de 30 mil anos. Na verdade, a cepa da gripe espanhola ainda continua circulando em nosso mundo, mas Viviane explica que não está claro se os vírus poderiam voltar a se tornar ativos após permanecerem congelados por milhares ou milhões de anos.

Pesquisadores da UFPR trabalham com metodologia que detecta marcas genéticas do vírus no organismo com insumos mais acessíveis. Fotos: Cibele Rowena/Divulgação

“Não conseguimos nem mesmo saber se vírus congelados causariam doenças nos humanos, já que são vírus que não se aperfeiçoaram ao longo dos anos em termos de infecção e transmissibilidade”, comenta. “Mas qualquer vírus descoberto deverá ser estudado para avaliar que tipo de organismos vivos ele costumava infectar e qual era o seu potencial de transmissibilidade na época”, conclui.

Além da existência dos vírus como microrganismos, animais também podem ser fontes de contaminação. O professor Breno explica que até mesmo entre os próprios animais existem pandemias e epidemias, que podem não necessariamente contaminar os seres humanos. “Atualmente, estamos passando por uma grande crise com a epidemia de Peste Suína que está acontecendo na América Central, mas não há risco para nós [humanos]”, explica. Inclusive, até mesmo os próprios animais possuem um sistema imunológico. “Mesmo animais primitivos como camarões têm sistema imune”, comenta o professor.

No entanto, algumas doenças podem acabar pulando para os seres humanos dependendo do contato, como reforça o professor Alexandre. ” A transmissão pode ocorrer por contato direto, como a raiva, por saliva na mordedura de cães ou morcegos, pela urina (leptospirose por ratos), água e carne mal passada (toxoplasmose de fezes de gatos)”, diz.

E nesse ponto entra outra fonte de contaminação para o surgimento de novas doenças – a contaminação por alimentos. “Os alimentos são particularmente importantes, possuem serviço de vigilância sanitária específico e quando isso ocorre são chamados de ETA, ou enfermidades transmitidas por alimentos” explica o professor Alexandre.

O professor do Departamento de Patologia explica que todos os alimentos podem se tornar um risco de contaminação, quando não bem tratados. No entanto, reforça que o principal risco de contaminação em humanos, na verdade, são outros humanos.

“Mesmo quando falamos de infecção via alimento, sabemos que a principal fonte de contaminação dos alimentos é a atividade humana, seja durante a produção ou no preparo”, explica.

Por isso, os seres humanos, tal como os animais, possuem uma grande dependência do sistema imunológico. “Ele nos mantém vivos todos os dias”, conta o professor. “Por isso, pessoas com deficiências imunes não vivem muito tempo após o nascimento sem auxílio médico estrito”, conclui o professor. Desta forma, as pandemias ocorrem porque o patógeno aprende uma nova habilidade que engana ou foge da nossa imunidade. Assim, a ciência desenvolveu táticas para fortalecer nosso sistema imunológico contra essas doenças novas, garantindo que vivamos e que essas doenças sejam combatidas. A medida mais eficaz atualmente são as vacinas.

Então, como combater as novas doenças?

Com os avanços científicos e tecnológicos, o professor Breno explica que os seres humanos passaram a regulamentar a saúde nos últimos 100 anos, o que é pouco tempo. “As principais causas de morte eram infecciosas. Atualmente são doenças como câncer e doença coronariana, que não têm correlação com agentes microbianos”, defende.

Ele faz parte de um grupo de pesquisadores da UFPR que desenvolve uma vacina contra a Covid. “A importância da vacina é principalmente o desenvolvimento de capacidade local, tanto capacidade de pessoal e de tecnologia quanto de infraestrutura. A vacina já chegará em um mercado saturado com outras opções. Contudo, a tecnologia empregada nela será útil para outras vacinas no futuro. Tendo passado por essa experiência, a UFPR poderá responder de maneira bem mais célere em desafios similares no futuro“, conclui o professor.

A infectologista Viviane explica que os protocolos de segurança são extremamente importantes para a sociedade. “Todas essas medidas são importantes para contenção da transmissão de microrganismos como vírus, bactérias ou mesmo fungos”, defende a especialista. “São práticas preventivas que protegem não apenas o indivíduo, mas também o coletivo, tendo impacto em morbidade e mortalidade populacional”, conclui.

Segundo doutora Viviane, o aprendizado com a pandemia de Influenza H1N1 em 2009 já nos auxiliou com o enfrentamento da pandemia da Covid-19 em 2019. “Além disso, outras epidemias de menor impacto mundial, como a SARS em 2002, MERS 2012 e a epidemia do Ebola, auxiliaram os cientistas a adotarem diretrizes e medidas de segurança sanitária de forma mais rápida e a criarem vacinas ou tratamentos para a covid, por exemplo. Assim, o conhecimento acumulado das epidemias passadas auxiliam no enfrentamento mais robusto e mais eficiente para microrganismos emergentes ou reemergentes”, defende. Para ela, o que precisamos é manter um plano de ação para o emprego de políticas públicas regionais, nacionais e internacionais para o enfrentamento de novas epidemias.

Para o professor Breno, a sociedade está preparada para o caso do surgimento de novas doenças. “Provavelmente estamos mais prontos para isso do que para as mudanças climáticas que virão”, associa o professor. “Contudo, mais prontos do que nunca ainda é pouco, precisamos sempre continuar nos desenvolvendo. Estamos vendo várias universidades seguindo o mesmo movimento da UFPR e se preparando melhor para atender às demandas de doenças infecciosas no futuro”, finaliza.

 

Vacina desenvolvida pela UFPR

Pesquisas científicas e aprendizados

Além das pesquisas da vacina da UFPR da qual o professor Breno participa, Viviane conta que existem instituições que monitoram constantemente a incidência e a prevalência de doenças como é o caso, no Brasil, da Fiocruz. Outras organizações são a Organização Mundial da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde. “Essas organizações ou autoridades sanitárias estabelecem as doenças prioritárias e, portanto, dão a instrução de investigar todo caso notificado”, explica.

Em tal situação, o requerimento para efetivar uma investigação de surtos deriva dos objetivos gerais do sistema de saúde relacionado ao controle de doenças e o reconhecimento do perigo real ou potencial epidêmico para a população. “Se a doença é uma das indicadas na lista de doenças de notificação compulsória (DNC) do sistema de saúde, por exemplo, devido ao seu alto potencial de transmissão, cada caso deverá ser investigado sem considerar nenhum outro critério”, explica a médica.

Ela conta que as listas de DNC, geralmente, baseiam-se em critérios epidemiológicos nacional e internacionalmente estabelecidos e em função do alcance das medidas de controle da doença; em especial, aquelas que estão sob planos de erradicação e eliminação, bem como as de declaração obrigatória internacional e aquelas definidas como reemergentes.

Enquanto isso, o professor da veterinária, Alexander Biondo, conta que existem projetos como PetCOVID, coordenado pela UFPR e que atua em seis capitais. Nele, investigam a detecção de vírus nos animais, mas que não provocaram a doença em humanos ou foram transmitidos.

Doenças infecciosas possuem um grande impacto nas esferas social, econômica e política no Brasil e no mundo. Assim, acompanhar o desenvolvimento de pesquisas científicas e entender o papel da ciência nesse processo é essencial para desenvolver tratamentos e prevenir essas moléstias.

Acompanhe o dia a dia da ciência com a Agência Escola UFPR

Assista ao Bate-Papo AE: ciência em play
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Sobre a Agência Escola UFPR

A Agência Escola UFPR, a AE, é um projeto criado pelo Setor de Artes, Comunicação e Design (SACOD) para conectar ciência e sociedade. Desde 2018, possui uma equipe multidisciplinar de diversas áreas, cursos e programas que colocam em prática a divulgação científica. Para apresentar aos nossos públicos as pesquisas da UFPR, produzimos conteúdos em vários formatos, como matérias, reportagens, podcasts, audiovisuais, eventos e muito mais.

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