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Raízes de Fé: quando a lei consente com a intolerância religiosa

Por Alana Morzelli 

Supervisão: Maíra Gioia

Fotos: Mônica Lachmann/Acervo Solos Sagrados

 

O projeto Liberte Nosso Sagrado, desenvolvido pela UFPR e mais três universidades, desarquiva memórias da repressão em terreiros do Rio de Janeiro

 

Em 2007 foi criado no Brasil o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado neste 21 de janeiro. Dez anos antes, em 1997, a intolerância religiosa virou crime no Brasil quando foi sancionada a Lei 9.459. A lei considera crime a discriminação ou preconceito contra religiões, e prevê pena de 2 a 5 anos para quem se opor, impedir ou empregar violência contra manifestações ou práticas as religiosas. Apesar de atualmente a legislação permitir um espaço de denúncia para o crime, ela já foi usada para legitimar esse tipo de atitude.   

Tudo começa entre 1891 e 1946, quando mais de 500 objetos de religiões de matriz africana, especificamente de Candomblé e Umbanda, foram apreendidos pela polícia do estado do Rio de Janeiro, em contradição com a Carta Constitucional de 1891, do Brasil República, que já estabelecia o Estado laico e a liberdade de crença e culto. Para legitimar o confisco desses objetos, foram criados artigos que permitiam e incentivavam a denúncia e apreensão de objetos religiosos de matriz africana.

 

Em 2023, foram registrados 1.478 casos de intolerância religiosa no Brasil. Foto: Mônica Lachman/Acervo Solos Sagrados

Os terreiros eram processados, fichados e denunciados por três artigos penais, Art.156, Art.157 e Art.158, que eram referentes à prática de espiritismo, curandeirismo e exercício ilegal da medicina. (veja a legislação na íntegra abaixo)

A partir desses artigos, criou-se o projeto Liberte Nosso Sagrado: desarquivando memórias da repressão e da resistência das comunidades tradicionais de terreiros no Rio de Janeiro republicano (1889-1945), que envolve o Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), e o Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Os pesquisadores, por meio da análise de inquéritos policiais, buscam compreender as dinâmicas de apreensão de objetos religiosos e o impacto dessas ações nas comunidades tradicionais.

 

“A ideia é, a partir desse material, realizar um grande portifólio dos crimes praticados pela República, pelo estado brasileiro, nesses primeiros 50 anos da República contra as religiões de matriz africana para pensar depois formas de reparação. Quais ações de memória, verdade, justiça que caberiam e que tipo de formação, por exemplo, de material didático poderia ser construído a partir desses dados da pesquisa”, explica Thiago Hoshiro, doutor em Direito e cocoordenador do projeto na UFPR.

 

Não se sabe exatamente quantos itens foram apreendidos no período, pois muitos desses objetos não eram registrados de maneira adequada. Foto: Mônica Lachman/Acervo Solos Sagrados

 

No período de criação do Código Penal de 1891, a ideologia do branqueamento racial – que defendia que a população negra experimentaria um avanço cultural e genético, ou até mesmo desapareceria completamente ao longo de várias gerações de miscigenação entre brancos e negros – era amplamente aceita como a solução para o excesso de indígenas, mestiços e negros. Essa lógica também se aplicava à cultura e religiosidade, como no Art.402, que criminalizava a capoeira, e levou vários capoeiristas presos para as prisões de Fernando de Noronha e também para as prisões da Ilha Grande, os mesmos lugares que depois receberam presos políticos na ditadura do estado novo e na ditadura militar.

 

“A gente está tendo hoje, de fato, um estudo e um levantamento de toda essa violência que ocorreu. Para poder entender, compreender e revelar esses nomes, porque muitas vezes a gente tem as vítimas, mas a gente não tem o nome dos terreiros, não tem o nome dos religiosos, não tem o nome das lideranças religiosas que foram vitimadas por esse crime, que é um crime do estado”, argumenta Jorge Santana, professor de História do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e um dos diretores do documentário Nosso Sagrado.

 

A partir de 1891, foram realizados diversos inquéritos policiais – processo pré-judicial que reúne provas para a criação de um processo penal. Apoiados nos artigos do Código Penal, os inquéritos relacionados à apreensão de objetos dos terreiros cariocas não formavam um processo penal, que, apesar de ter seu caráter acusatório e contraditório, permite a ampla defesa do acusado e o devido processo legal, o que não era possibilitado aos terreiros, pais de santo e mães de santo que tiveram seu sagrado violado.

 

“As pessoas que acessavam o processo legal de 1900 para frente são pessoas que são rodeados por um coletivo. Então, se a gente tem um processo de associação espírita, logo, essa pessoa é defendida por um coletivo de pessoas pagas por essas ações espírita. Tinha capacidade de defesa quem tinha direito a advogado, quem conseguia pagar um advogado, quem entendia minimamente do que escrever dentro do diário para se defender”, conta Stefany de Lucas, mestranda em Direito da UFPR e participante do projeto Liberte Nosso Sagrado.

 

O racismo brasileiro

 

O código penal foi criado apenas dois anos após o fim da escravidão no Brasil. Foto: Mônica Lachman/Acervo Solos Sagrados

Durante muito tempo, argumentou-se que o racismo nos Estados Unidos era diferente do racismo no Brasil, pois, no Brasil, ele estaria mais presente em ações individuais de pessoas racistas, e não no código de leis. No entanto, ao analisar o Código Penal de 1890 com mais atenção, é possível perceber uma legislação tão racista quanto às leis de segregação de 1877 nos Estados Unidos. Esse código de leis foi responsável por estabelecer uma segregação racial poderosa no Brasil. Ao mesmo tempo, enquanto o Código Penal impunha essas restrições, havia uma Constituição que se apresentava como liberal e progressista, defendendo o Estado laico e a liberdade religiosa. Contudo, o Código Penal atuava para subjugar os ex-escravizados, reprimindo suas expressões culturais, religiosas e, de certa forma, políticas.

 

“DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890 

CÓDIGO PENAL DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 

Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos: 

Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. 

Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes a que derem causa. 

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: 

Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. 

Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro: 

Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. 

Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação, ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou apparelho organico, ou, em summa, alguma enfermidade: 

Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. 

Si resultar a morte: 

Pena – de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.” 

 

A série Raízes de Fé apresenta duas reportagens produzidas pela Agência Escola UFPR sobre o movimento Liberte o Nosso Sagrado. A campanha tinha como objetivo a devolução de objetos sagrados de religiões afro-brasileiras, que estavam sob a custódia da Polícia Civil do Rio de Janeiro e foram transferidos para o Museu da República em 2021. O material explora esse movimento na luta contra o preconceito religioso. Os (as) pesquisadores (as), por meio da análise de inquéritos policiais, buscam compreender as dinâmicas de apreensão de objetos religiosos e o impacto dessas ações nas comunidades tradicionais. A próxima reportagem será publicada na quinta-feira (23).

 

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Sobre a Agência Escola UFPR

A Agência Escola UFPR, a AE, é um projeto criado pelo Setor de Artes, Comunicação e Design (SACOD) para conectar ciência e sociedade. Desde 2018, possui uma equipe multidisciplinar de diversas áreas, cursos e programas que colocam em prática a divulgação científica. Para apresentar aos nossos públicos as pesquisas da UFPR, produzimos conteúdos em vários formatos, como matérias, reportagens, podcasts, audiovisuais, eventos e muito mais.

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