Projetos de extensão da Universidade oferecem orientações e suporte para o acesso aos direitos básicos, como saúde, moradia, educação e assistência social #AgenciaEscolaUFPR
Por Maria Fernanda Mileski
Com colaboração de Matheus Dias e edição de Chirlei Kohls
Era sábado pela tarde, os corredores do 10º andar do Prédio Dom Pedro I, na Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estavam repletos de alunos que vieram não só de partes de Curitiba e Região Metropolitana, mas de diferentes países do mundo. O mesmo acontecia na sala 28, do Prédio Histórico da UFPR. Por lá, se ouviam vozes em português e, também, em espanhol, árabe, creole, francês ou inglês. Depois da pandemia, os sábados nunca foram os mesmos.
De dentro para fora dos corredores e salas da Universidade, os projetos de extensão que oferecem apoio a migrantes e refugiados ultrapassaram fronteiras, desta vez virtuais, para continuar um trabalho com pessoas que sentem diariamente as dificuldades no acesso aos direitos básicos, como saúde, moradia, educação e assistência social. Com a pandemia, essas condições colocaram esse grupo entre os mais impactados pela Covid-19.
O mundo vê um crescente aumento das migrações forçadas – são assim chamados os movimentos migratórios motivados por crises humanitárias e ameaças à vida. Segundo o relatório “Tendências Globais – Deslocamento Forçado em 2020”, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o número de pessoas deslocadas involuntariamente foi de 82,4 milhões. O maior da história. O Brasil possui, ao todo, 57.099 pessoas reconhecidas como refugiadas, de acordo com a 6ª edição do relatório “Refúgio em Números”, do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).
Para a professora da Faculdade de Direito da UFPR e coordenadora do Programa Política Migratória e Universidade Brasileira (Pmub), Tatyana Friedrich, os deslocamentos forçados podem resultar em fatores que agravam as vulnerabilidades e criam barreiras para o acesso a direitos. Além disso, a pandemia também afeta migrantes e refugiados de forma desproporcional. “São vivências que marcam a condição social dessas pessoas em meio à Covid-19”, relata.
Por mais que a Lei n° 9474/97, que implementa o Estatuto dos Refugiados, e a Lei da Migração, nº 13.445/2017, garantam a migrantes e refugiados o acesso a direitos básicos independente da situação migratória, o que se percebe na prática é que a efetivação da legislação esbarra também na questão linguística, no conhecimento de informações sobre serviços e na discriminação, segundo confirma Friedrich.
Pandemia e seu efeito na permanência e aquisição de empregos
A forma com que migrantes e refugiados são afetados com a pandemia não se refere apenas às situações já citadas. O grupo de pesquisa “Migrações Internacionais e Multiculturalismo”, do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR, integrou um estudo nacional que resultou na publicação “Impactos da Pandemia de Covid-19 nas Migrações Internacionais no Brasil”. Os resultados paranaenses compõem o capítulo “Imigrantes Internacionais no Estado do Paraná e a Pandemia de Covid-19”.
Através do estudo, os pesquisadores verificaram o impacto da pandemia sobre a vida de 184 migrantes e refugiados que vivem em 16 municípios. Sobre mercado de trabalho, demonstrou-se que antes da Covid-19, 91 deles tinham emprego, enquanto 74 não possuíam. Depois, apenas 40 continuaram trabalhando e cinco começaram a trabalhar. A maioria dos entrevistados (99) afirmou que sua renda mensal está muito abaixo dos gastos e em 39 casos, cobre parcialmente suas necessidades.
A maioria dos que participaram da pesquisa paranaense foram venezuelanos, com 129 pessoas. Depois, vêm 19 haitianos, 15 cubanos, quatro sírios, dois angolanos e um representante para Angola, Argentina, Bolívia, Colômbia, República Democrática do Congo, Benim, Gana, Jordânia, Nigéria, Peru, Senegal e Egito. Quatro respondentes preferiram não contar sua origem.
Segundo o líder do grupo de pesquisa Migrações Internacionais e Multiculturalismo e coordenador da pesquisa no Paraná, professor Márcio de Oliveira, a pesquisa mostra aspectos importantes sobre como a pandemia afeta a vida dos migrantes que estão no estado. “A queda da atividade econômica atinge essa população de uma maneira distinta. Os migrantes estão vivendo problemas potencializados pela pandemia, mas que são situações correntes”. O documento completo elaborado pelos pesquisadores será encaminhado ao Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (Cerma).
Ao encontro com os dados do estudo, Tatyana Friedrich explica que, em grande parte, migrantes e refugiados (muitos, gente com qualificação) se inserem no mercado de trabalho brasileiro de modo informal ou executam trabalhos considerados essenciais, mas de forma precarizada. Isso explica a condição de vulnerabilidade financeira, que é agravada pela dificuldade de acesso aos programas de apoio governamentais.
“Em relação ao auxílio emergencial, há muita dificuldade desde o idioma usado no aplicativo até o acesso à internet. Também não prevê particularidades dos migrantes que não têm RG, mas sim o RNM [Registro Nacional Migratório]. Muitos tiveram problemas com erros no nome de suas mães”, afirma a professora.
Outro artigo científico sobre migração e refúgio em tempos de pandemia integra o livro “Covid-19 e Direito brasileiro: mudanças e impactos”, que tem entre os organizadores o professor Marco Serau, do Departamento de Direito Privado da UFPR. O capítulo assinado pela professora Tatyana e Vitor Jasper trata sobre impactos jurídicos e sociais para migrantes e refugiados.
A obra traz 67 autores e 42 artigos de instituições de diferentes regiões do país. “Tentamos abranger as principais áreas do Direito atingidas pelas mudanças legislativas que vieram em decorrência do novo coronavírus: direito público, direito civil (contratos), direito de família e relações familiares, direito penal e violência doméstica, direito do trabalho e as mudanças nas relações de trabalho, e direitos humanos e populações vulneráveis, entre elas os migrantes”, diz o professor Marco.
Migração contemplada na extensão da UFPR
O que se mostrou até aqui é que existem singularidades relacionadas às vidas de migrantes e refugiados no Brasil. No entanto, as condições não resumem as múltiplas trajetórias dessas pessoas, marcadas por ricas características culturais e práticas de resistência e solidariedade. É pensando nisso que o programa de extensão Política Migratória e Universidade Brasileira (Pmub) existe na UFPR.
O Pmub é referência nas ações de ensino, pesquisa e extensão e no desenvolvimento de políticas afirmativas dentro da Universidade voltadas às pessoas migrantes, refugiadas e apátridas. A partir dele, desenvolvem-se atividades em projetos de extensão nos cursos de Letras, Direito, Psicologia, Informática, Sociologia, Medicina e do Programa de Educação Tutorial (PET) História da UFPR.
Tatyana Friedrich defende que o Pmub tem a importância de abrir as portas da UFPR para essa parcela da população. “A Universidade tem que ser reflexo da sociedade, se ela não tem migrantes e refugiados acaba não sendo esse reflexo, porque eles são uma realidade no contexto do país”.
Wilsort Cenatus é estudante do curso de Agronomia da UFPR e integrante do Pmub. Além de colaborar nas ações do programa, o haitiano é uma liderança pelo seu trabalho como diretor executivo na União da Comunidade dos Estudantes e Profissionais Haitianos (UCEPH). Segundo ele, essa é uma associação que busca criar uma ponte entre estudantes da Universidade com os migrantes residentes em Curitiba. “Também busca promover um trabalho na procura de instituições, pessoas e entidades que possam apoiar quem está em vulnerabilidade”.
O estudante relata que a pandemia acrescentou dificuldades no aspecto econômico e em relação às políticas sociais, mas destaca a questão da documentação, que dificulta a formalização de um emprego ou o acesso aos auxílios do governo. Por isso, Wilsort afirma que um dos trabalhos da associação é também investir na formação dos migrantes. “É um trabalho de educação. Buscamos cursos para migrantes, para que eles possam ter condições de participar socialmente. Esse é um trabalho social que fazemos”, defende.
No Brasil, a saúde que não pode somente falar português
No contexto da pandemia da Covid-19, questões relacionadas à saúde ganharam destaque. Para migrantes e refugiados não foi diferente. A barreira da língua dificulta a busca por serviços (principalmente pelas pessoas sem documentação) e prejudica o acesso às informações que surgem a todo o momento sobre o vírus, cuidados e vacinação. Isso é o que conta Deivisson Vianna Dantas dos Santos, professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFPR e coordenador do projeto de extensão Os Caminhos do SUS.
Esse é o mais novo dos projetos vinculados ao Pmub, que busca acessibilizar informações sobre os serviços de saúde. Além disso, os integrantes do projeto realizam o acompanhamento de migrantes e refugiados em atendimentos, para facilitar a tradução e também oferecer o suporte que a pessoa precisa. “Isso tem a ver com a realidade que afeta de maneira mais forte todos os migrantes. Sabemos que nessa situação da pandemia, na qual temos uma restrição do acesso aos serviços, a primeira população que sofre é a mais vulnerável. Queremos apoiar nesse sentido”, aponta o professor.
Em 2020, o grupo ampliou a produção de materiais informativos, traduzidos em seis línguas sobre informações da Covid-19 e também aquelas divulgadas pelas secretarias estadual e municipal de saúde. Participam do projeto de extensão 12 alunos dos cursos de medicina, enfermagem, odontologia, farmácia e ciência da computação. Segundo Deivisson, parte dos estudantes são migrantes, o que contribui ainda mais com o grupo. É o caso de Ketline Marcelus, estudante do curso de Enfermagem da UFPR e integrante do Os Caminhos do SUS desde o começo de 2020.
A haitiana atua na tradução em creole e francês e acompanha migrantes em atendimentos. “Teve uma aluna que estava fazendo uma pesquisa para ajudar migrantes a entenderem melhor o sistema de saúde público. Eu me envolvi nesse processo e ajudei. Ela passava os contatos para que a gente pudesse ligar e explicar a outros migrantes como funciona o atendimento pelo SUS. Foi gratificante”, conta Ketline.
Manutenção do vínculo mesmo com o distanciamento
A desinformação e dúvidas sobre a pandemia são uma realidade para todos aqueles que residem no Brasil. Para migrantes e refugiados, é agravada pela barreira da língua. Com a pesquisa “Imigrantes Internacionais no Estado do Paraná e a Pandemia de Covid-19”, os estudantes da UFPR ainda revelaram que 87 dos entrevistados afirmaram não conhecer seus direitos (na assistência social, saúde e educação). Essa problemática foi percebida pelos integrantes do projeto de extensão Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH) logo após a suspensão das aulas presenciais na UFPR, devido ao agravamento da pandemia no Paraná.
O PBMIH oferece aulas de português para migrantes portadores de visto de acolhida humanitária, refúgio, apátridas e/ou migrantes em vulnerabilidade social moradores de Curitiba e Região Metropolitana. É formado por uma coordenação colegiada composta pelas professoras Maria Gabriel, Maria Cristina Figueiredo, Claudia Daher e Viviane Pereira.
Maria Gabriel afirma que, com a impossibilidade de realizar as aulas presenciais, a primeira preocupação do projeto foi pensar em atualizar migrantes e refugiados sobre as informações, para garantir o acesso a direitos e serviços que estivessem disponíveis. Assim, através da ação chamada “Entrelaços”, um grupo transdisciplinar do PBMIH passou a produzir materiais informativos sobre saúde e auxílios sociais traduzidos em seis línguas, disponíveis no site do projeto e nas redes sociais. A equipe é composta, em sua maioria, por alunas e alunos da graduação da UFPR, professores, estudantes de pós-graduação, migrantes e ex-alunos do projeto. Em 2020, foram 14 materiais produzidos e traduzidos em seis línguas. Em 2021, o grupo lançou uma cartilha sobre violência doméstica em parceria com a Cáritas Paraná e apoio da ACNUR.
A importância dessa ação também significa manter o vínculo com os estudantes e com a comunidade de migrantes e refugiados. Outras atividades também foram realizadas, como trocas de cartas, envio de vídeos e encontro online. “Nós mantivemos um grupo de WhatsApp, com o contato através de mensagens, de vídeos e de correspondência e, também, através das nossas redes sociais. Sempre pensamos que o convívio e o elo entre a comunidade se dá através do contato. Nossa principal intenção foi de se manter presente para essas pessoas”, relata a professora.
A manutenção do vínculo também foi uma preocupação para os integrantes da ação extensionista Pequenos do Mundo, voltada ao acolhimento e desenvolvimento de ações específicas com crianças migrantes. Vinculada ao PBMIH e ao projeto de extensão Movimentos Migratórios e Psicologia (Move), antes da pandemia a ação desenvolvia atividades com os pequenos, enquanto as suas famílias frequentavam as aulas de português aos sábados.
“Desenvolvemos uma metodologia em que as crianças pudessem ouvir histórias, contar as suas e, nesse processo, se reconhecerem e reconhecerem os outros. Com o resgate e a valorização das suas memórias afetivas e de suas famílias, sobre cultura de origem, trajetórias e vivências”, explica Graziela Lucchesi, professora do Departamento de Psicologia da UFPR e coordenadora do Pequenos do Mundo.
Confira abaixo o conto venezuelano Uribí, a Madrinha das Palavras, uma contação de história do projeto Pequenos do Mundo, com participação de crianças migrantes:
Em 2020, o grupo manteve contato com 24 famílias de 35 crianças, através de um grupo do WhatsApp, em que encaminham vídeos produzidos pelos próprios integrantes da ação sobre datas comemorativas ou conteúdos pertinentes à proposta. Já em 2021, os temas dos vídeos são histórias e curiosidades dos países de origem das crianças. A professora ainda conta que foram enviadas atividades para pintura, com base nas contações de história presentes nos vídeos, e realizado o primeiro encontro virtual entre os integrantes e crianças do Pequenos do Mundo.
“Esse é um espaço muito importante para as famílias e para nós, de poder manter o contato e poder se comunicar sobre determinados assuntos. As ações ficam muito restritas em função do distanciamento, mas achamos que temos desdobramentos positivos para quando a gente puder retornar”, defende Graziela.
Ouça abaixo um boletim informativo do Volume UFPR, uma produção da Agência Escola UFPR em parceria com a rádio UniFM:
Acolhimento e participação social são palavras-chave
Considerando o contexto do Brasil no fluxo migratório do mundo, há a importância de políticas públicas que sustentem o acolhimento de migrantes e refugiados, atrelado ao olhar pelas suas demandas particulares. Maria Gabriel afirma que o PBMIH atua como uma ponte entre essas pessoas e a comunidade. “Tentamos sempre ter ações que visem a inserção da população num momento que estamos mais ‘ilhados’ devido à pandemia, com impossibilidade de ações que permitam o agrupamento de pessoas. Para eles é mais difícil, por isso a importância do acolhimento”.
Tatyana Friedrich pontua que, em termos de políticas públicas, é fundamental estimular a participação de migrantes e refugiados nas decisões políticas e sociais, principalmente em relação às próprias demandas. “Eles moram no país e precisam ter esse espaço, pois possuem particularidades e precisam de políticas públicas próprias. A Lei da Migração garante isso”, conclui.
Essa participação assegura que migrantes e refugiados, como o Wilsort Cenatus, construam mais que uma vida no Brasil, mas também sonhos. Atualmente, o desejo do haitiano é ter um espaço físico para a realização das atividades da União da Comunidade dos Estudantes e Profissionais Haitianos. Antes da pandemia, as ações eram realizadas na UFPR. “Nós usávamos o espaço da Universidade para desenvolver nossas ações que tinham a ver com formação e incentivo para geração de renda. Meu desejo é conquistar um local para que possamos trabalhar com a associação, para somar e ser um lugar de transformação, que oportunize uma autonomia econômica”.
Foto destaque: Bruno Covello/Arquivo PBMIH 2018