Kelly Prudencio explica como trabalham os cientistas e esclarece o descrédito da ciência em meio às fake news e à desinformação, em entrevista para a Agência Escola UFPR em parceria com o portal IDe+ #AgenciaEscolaUFPR
Por Isabela Stanga
Sob supervisão de Maria Fernanda Mileski
Durante a pandemia de Covid-19, a sociedade se aproximou da ciência para descobrir o modo correto de se proteger contra o novo coronavírus, entender as estatísticas de casos e mortes no país e também para garantir imunidade contra a doença através das vacinas. Ao mesmo tempo, uma parcela da população coloca em xeque o papel e a confiança na ciência, o que dificulta a discussão sobre o conhecimento científico e promove a circulação de informações incorretas a partir das chamadas fake news (notícias falsas).
Nesse cenário, torna-se essencial o trabalho da divulgação científica, que procura esclarecer como funciona a pesquisa acadêmica e, assim, aproximar a ciência das pessoas. Para discutir como é feita a ciência e sua divulgação, bem como esclarecer o contexto de desinformação vivido atualmente, a Agência Escola UFPR (AE) em parceria com o Portal IDe+, entrevistou a pesquisadora Kelly Prudencio, do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Paraná, que também atuou como primeira coordenadora da AE, em 2018. Atualmente, coordena o grupo de pesquisa Comunicação e Participação Política (COMPA), integrante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD).
De acordo com a professora, existe uma certa desconfiança com relação aos cientistas por parte da população que não tem acesso ao ambiente acadêmico. “Existem alguns problemas acumulados, entre eles um histórico de desconhecimento ou de separação da ciência do conhecimento das pessoas, e o ressentimento em relação aos cientistas, também por supostamente serem indivíduos muito inteligentes. Esse descrédito tem uma cultura de desinformação e, constantemente, a ciência é rebaixada à opinião”, explica.
Para Kelly, reverter a situação atual de descrédito na ciência é difícil, mas ela reforça que a divulgação científica é o caminho, já que permite às pessoas a compreensão de como as pesquisas funcionam. “Mostrar para a sociedade como a ciência trabalha quebra um pouco da ideia mítica em relação à ciência e aos cientistas, além de expor que a pesquisa é um trabalho colaborativo, que seus resultados são importantes e que podem inclusive melhorar o debate público sobre assuntos relevantes”, defende.
No mês de outubro, a ação Pergunte aos Cientistas, da Agência Escola UFPR, recebe dúvidas da sociedade sobre o tema fake news e pandemia, que serão respondidas por cientistas da Universidade. Caso você tenha alguma dúvida sobre o assunto que não seja esclarecida nesta matéria ou queira saber se certa informação sobre a Covid-19 é verdadeira ou não, envie sua pergunta pelo e-mail agenciaescolaufpr@gmail.com ou pelas redes sociais da Agência Escola (Facebook, Instagram e Twitter).
Além da desinformação em meios digitais, a professora Kelly também aborda na entrevista quais as etapas do fazer científico e quais são boas características para quem quer seguir a carreira acadêmica. Confira as perguntas e as respostas a seguir:
Isabela Stanga – Qual a importância da divulgação científica dentro e fora do ambiente acadêmico, e quais as pessoas envolvidas nesses processos?
Kelly Prudencio – Em primeiro lugar, acredito que a razão de ser da ciência é que seus resultados precisam ser conhecidos. Então, a divulgação científica é parte do fazer científico. A comunidade científica entende essa divulgação como a publicação de resultados através de relatórios, artigos, discussões em painéis, eventos, entre outros. O que se tem tratado mais recentemente como divulgação científica é um trabalho que tenta dar um alcance maior para essa discussão, indo além do campo científico. A divulgação é importante no sentido de mostrar como a ciência trabalha, para quebrar um pouco da ideia mítica em relação à ciência e aos cientistas, além de expor que a pesquisa é um trabalho colaborativo, com vários níveis de formação, que seus resultados são importantes e que podem inclusive melhorar a qualidade do debate público sobre assuntos relevantes. Assim, a divulgação científica e um trabalho de comunicação estimula a difusão de informações específicas do campo científico para alimentar esse debate. Como já mencionei, os próprios cientistas procuram realizar divulgação científica no trabalho de publicação. Mas, agora, começam a ficar mais evidentes os chamados mediadores entre a produção científica e a difusão desse conhecimento, que são os divulgadores científicos. É um trabalho que depende da interação entre campo científico e
profissionais de divulgação científica, que precisam entender do que estão tratando, tanto um quanto outro, devem fazer uma tradução para um público que não faz parte desse universo.
Isabela – Como aproximar a população da pesquisa científica no contexto de desinformação e de descrédito da ciência vivido atualmente?
Kelly – Infelizmente, no Brasil, o acesso à educação superior é muito restrito a uma parcela muito pequena da população, sendo visto como um privilégio e não como um direito. Se funciona como um privilégio, os privilegiados que têm acesso vão sofrer algum ressentimento de quem não desfruta desse mesmo atributo. Em nosso país, está disseminado um certo ressentimento que ficou incubado até o que chamamos de “ascensão da extrema direita”, que desconfia não só da ciência, mas de qualquer autoridade institucional. As instituições que trabalham com informação são as mais afetadas, como a própria ciência, os meios de comunicação e o sistema político. Existem alguns problemas acumulados, entre eles um histórico de desconhecimento ou de separação da ciência do conhecimento das pessoas, e o ressentimento em relação aos cientistas, que são desacreditados porque “não vivem o mundo real”. Também por supostamente serem indivíduos muito inteligentes e, para aqueles que não se acham tão inteligentes, existe uma desconfiança com relação ao produto de seu trabalho, que são as pesquisas e os resultados. Esse descrédito tem uma cultura de desinformação e, constantemente, a ciência é rebaixada à opinião.
Como reverter esse cenário? Acho que as coisas já estão se revertendo. O caso da pandemia é muito doloroso, porque significa um número de mortes absurdo, mas os casos e as mortes estão diminuindo por causa das vacinas, que são resultado de um investimento em conhecimento científico. Nesse sentido, é trabalho da divulgação científica mostrar como funciona esse processo: é mais complexo do que alguém que teve uma ideia brilhante, disse eureka [descobri] e achou alguma coisa. A investigação científica é complexa e envolve testes diversos. Acredito que vamos reverter esse descrédito vivido atualmente pela insistência. É preciso dar a conhecer o que a ciência faz, mostrar que de fato ela ajuda a combater pandemias. Também é preciso ressaltar que, para fazer tudo isso, a ciência precisa de dinheiro e de financiamento.
Isabela – Como a ciência acontece? Quais são as fases da pesquisa científica?
Kelly – A ciência não é uma só, existem vários ramos diferentes entre si. Assim, existem também diferentes formas de construir o objeto científico [aquilo que é pesquisado], mas o que caracteriza a ciência no geral é o método. Ou seja, é a maneira pela qual um fenômeno, seja ele da natureza ou da sociedade, vai ser apresentado ou construído pela comunidade científica para, a partir dessa discussão que é sempre teórica, produzir um resultado.
Existe um senso comum de que a ciência vai desenvolver a tecnologia, por isso existe o pensamento de que ciência é só a área de Biológicas, Exatas, Tecnológicas e da Saúde, enquanto a Ciência Política, a Sociologia, a Antropologia, a História, “não servem para nada”, por oferecem a interpretação de acontecimentos. Desse modo, existe um conflito sobre o papel do conhecimento, ou seja, o que a ciência tem que fazer. Não é um conflito ruim, que tem o errado e o certo, mas apresenta maneiras diferentes de pensar a ciência. É por isso que as pessoas precisam entender que o discurso científico possui uma lógica e entender essa lógica. Não é dizer “isso não é verdade, não acontece assim na prática”. Portanto, ao início do processo, existe a construção do objeto, uma proposta de abordagem do fenômeno e, a partir disso, o estabelecimento de perguntas ou hipóteses para a descoberta científica. Porque se não existem dúvidas, não se tem ciência. Algo precisa ser conhecido que não se conhece ainda. As hipóteses vão conduzir o estudo para a confirmação, para contestação ou para reformular aquelas perguntas. Inclusive, quando um estudo não alcança os resultados que esperava encontrar, isso significa que algo novo surgiu, que não estava previsto naquelas hipóteses, o que é positivo para a ciência. Existe também a metodologia, que é diferente de método, em que você detalha quais critérios preestabelecidos e explicitados vão servir de base para a coleta e análise das informações.
Isabela – Quem pode ser um cientista? E o que é necessário para ser um cientista?
Kelly – Qualquer pessoa que queira pode ser cientista. Se eu fosse dizer alguns requisitos: tem que ser curioso, desconfiar, ter dúvidas, buscar informações novas e estar aberto à crítica, porque o trabalho científico é sempre de questionamento. Se for uma pessoa de muitas certezas, pode também, mas vai levar uma bordoada atrás da outra, porque tem que entender que o que nos move é a dúvida e a curiosidade de conhecer coisas novas e não confirmar coisas que já sabemos. Por exemplo, Neil deGrasse Tyson, cientista reconhecidíssimo e divulgador, conta que a filha dele desconfiou da fada do dente. Ela perguntou como que a fada do dente ia até a casa dela, pegava o dente e deixava uma moedinha. Tyson, então, disse que ela teria que descobrir, estimulando-a a buscar a resposta. E a menina ficou acordada para tentar descobrir e não conseguiu, voltou a dormir, mas continuou intrigada. Teve um dia que ela colocou um papel no chão para que a fada do dente passasse e pisasse, assim fazia barulho para escutar. A menina fez isso muitas vezes e não conseguiu descobrir nada… Ela chegou à conclusão de que a fada do dente não existia porque não tinha evidência dela. É isso que a ciência faz: trabalha para encontrar evidências sobre determinados fenômenos. Elas não nascem naturalmente, é feito um trabalho de investigação e de apresentação desses dados.
Isabela – De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais do que uma pandemia, vivemos também uma infodemia, ou seja, uma crise de muitas informações que se replicam rapidamente na internet, muitas das quais nem são verdadeiras. Quais cuidados se deve ter, nesse cenário, ao se realizar a divulgação científica?
Kelly – É um momento de crise e a dificuldade é maior, todos sabem, a competição é maior por conta dessa superabundância de informação. Um autor francês, que se chama Ignacio Ramonet, na década de 1990 já falava que, ao contrário da censura quando existe um blackout – um apagão de informações -, agora, nós estamos ofuscados pelo excesso de informação, que ele chama de whiteout. Nos dois casos, você não consegue enxergar, por cerceamento ou por excesso. Eu acredito que esses ambientes digitais precisam ser regulados, e essa é uma outra discussão. Enquanto não houver regulação nos meios de comunicação, principalmente nos espaços digitais de circulação de informação, que estão na mão de empresas privadas que lucram com a desinformação, isso não vai mudar. O buraco é mais embaixo, não é só o divulgador científico que deve tornar um produto mais interessante para quem está consumindo, porque a concorrência é muito grande. Ao mesmo tempo, deve-se procurar fornecer informação de qualidade, o que dá muito trabalho, porque devemos fazer isso sem ser enfadonho, senão ninguém vai prestar atenção.
Isabela – Como conferir se uma informação é mesmo científica e confiável?
Kelly – Pela fonte, pesquisando quais os cientistas responsáveis por aquela pesquisa, certificar de que ela esteja publicada em periódicos científicos legitimados pela comunidade científica ou em veículos de informação que se baseiam nesses periódicos. O discurso científico é baseado no método – todo resultado vem de um longo processo de investigação. Quando o cientista dá uma opinião, ele o faz com base no acúmulo de resultados, obtidos por métodos verificados por seus pares. E o reconhecimento do valor de conhecimento de uma pesquisa é feito por críticas dentro do campo científico.
Isabela – Como primeira coordenadora da Agência Escola UFPR, qual a sua visão sobre o contato dos estudantes com a divulgação científica durante a graduação? E de que forma o trabalho da Agência contribui para a sociedade?
Kelly – Desde que eu entrei na Universidade Federal do Paraná como professora, eu tinha vontade de fazer um projeto de extensão, voltado à sociedade. Eu vivi bem a parte de ensino, apesar de ser difícil e sei também como funciona a pesquisa, apesar de enfrentar desafios, mas sempre me interessei pela extensão, essa relação da universidade com outros públicos. Assim, ajudei a escrever o projeto inicial da Agência Escola UFPR, em 2018. Acho que a Agência permite aos bolsistas estudantes de graduação e pós-graduação conhecer a Universidade, isso tem um valor que quem fica só em sala de aula nunca vai aprender. O primeiro grande ganho da AE, então, é de quem faz parte dela, por proporcionar o conhecimento sobre nosso próprio universo. Vemos a universidade com outros olhos. Vemos como ela é grande, um ambiente diverso, como tem gente diferente pensando diferente e com outros planos. Em relação à sociedade, acredito que o projeto produz uma virada na imagem da universidade, não só da UFPR, mas de todas que estão na lida para fazer coisa relevante. Fazemos muita coisa significativa que as pessoas não sabem. A Agência Escola UFPR, assim, contribui para mostrar quão abrangente é o trabalho científico, em todas as suas esferas. Inclusive, no começo da pandemia, nós fizemos um levantamento de quais cientistas estavam sendo entrevistados pela imprensa. Bem no começo, eram apenas epidemiologistas e pesquisadores da área da saúde. Porém, com o passar do tempo, também começaram a aparecer na mídia cientistas políticos, historiadores, o que pode ajudar as pessoas a compreenderem a diversidade da ciência.
Foto destaque: Reprodução/Isabela Stanga
Projeto gráfico e diagramação da arte: Ana Polena